A BIBLIOTECA NO PORÃO
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CARTA A EUSTÁQUIO GOMES 

 
 

Prezado Eustáquio

Viajei a Belo Horizonte para um encontro de literatura na UFMG, e levei o seu livro A Biblioteca no Porão. Não parei de ler até terminar o livro. Leitura agradável, que nos comunica um entusiasmo pelo que você define como a “música” do livro. Há poucas obras assim, que se sustentam não pelo assunto ou pelas inovações de estrutura, mas pela música. Esta era a tese de Ernesto Sábato, de que todo livro tem uma música. Mas no caso do seu livro é a música que nos rouba da realidade e nos deixa em um estado de elevação espiritual.

A idéia da semificcionalização do livro também me interessou. Você imagina um ancião mudando-se para o porão, habitante de uma ilha, e no começo imaginei que pudesse ser de fato um livro de ficção. Depois, o real da vida do autor, seus móveis existenciais, suas obsessões, suas particularidades vão devolvendo ao leitor o senso de cotidianidade tão essencial para a crônica.

Além dos personagens reais, que assumem algo de inventado, como um Rubem Alves já tocado pela figura de Paternostro, ou a Hilda Hilst, também a caminho da vida imaginária, chama a atenção a presença dos leitores – em vários textos ele se intrometem na obra. São seres pretensamente reais, mas se percebe que eles chegam ao livro pelo recurso da ficção. Mesmo alguns autores, que dão entrevista ao cronista, num expediente que se repete ao longo do livro, comparecem na condição de personagens. Daí deduzimos a grande verdade que parece estar por trás do livro. Mesmo quando fala do real, ou quando simula fazer isso, o escritor está fazendo ficção. Ele é um ser que faz com que tudo que seja tocado por seu olhar se converta em matéria de ficção.

Com isso, você minimiza a realidade justamente para ampliá-la. E uma força antinaturalista que você exerce dando ao verbo da crônica um estatuto não-confiável. Ao mesmo tempo, vai delimitando um espaço autobiográfico móvel, em que o autor é não o que ele exerce na vida real, mas tal como ele se vê neste espelho deformante da literatura.

Se o volume funciona bem no conjunto, há peças que mais me agradam isoladamente. Destaco: “Como começar um livro”, “Aventura de um leitor”, “O diário de Lázaro”, “A poesia dos escritórios”, “Em busca de Pérola”, “Hilda”, “Carta a García Márquez” e Mensagem aos cinquentões”.

Em suas mãos, a crônica tem algo de diário, pois a estrutura do diário é muito forte na sua ficção. Há uma presença interior. E isso me agrada.

Com este sentido de plenitude que a leitura nos deixa, envio o meu melhor abraço

Miguel Sanches Neto