Um romance político,
com sexo e humor
Oscar d'Ambrósio
Uma das características da modernidade do romance é a narrativa
multifacetada. Um mesmo fato pode ser contado de diferentes pontos de vista.
Do cruzamento deles, surge a visão do leitor, que participa ativamente
desse quebra-cabeças, compondo a sua própria versão.
O romance A Febre Amorosa, do mineiro radicado em Campinas, Eustáquio
Gomes, é um legítimo representante dessa tendência
ao contar a mesma história de três maneiras distintas, sempre
em capítulos curtos. Primeiro, de maneira linear; depois, tendo
como mote o local em que ocorreu cada ação; e, finalmente,
na forma de um índice remissivo. Ambientado em Campinas, durante
a epidemia de febre amarela, em 1889, ano da Proclamação
da República, o livro tem como eixo o triângulo amoroso entre
a jovem baronesa Angélica, casada com o barão Da Mata e amante
do médico sanitarista republicano Alvim. Dos elos entre essas personagens,
é desenrolado o fio narrativo, que permanece em segundo plano perante
o trabalho estilístico de Gomes.
Críticos literários como o rigoroso Wilson Martins já
apontaram as qualidades do livro, que cruza o humor, o sexo e a política
com naturalidade. Sobressai, porém, a oposição entre
o marido monarquista e o amante republicano. Mais do que a mera oposição
entre o velho e o novo, é possível verificar como os conflitos
humanos ocorrem motivados pela busca de algum tipo de poder, seja na cama
ou no governo.
O livro mostra, por exemplo, como a comissão municipal de higiene
combatia a febre amarela, sepultando rapidamente os corpos e incinerando
os objetos pessoais das vítimas da epidemia. Fatos históricos
como esse, descritos em poucas linhas, são matizados por ágeis
diálogos e pela descrição de usos e costumes de um
País mergulhado em crise existencial.
O irônico nome Angélica aponta justamente para a ausência
de perspectiva desse anjo. Como o Brasil, ela sai dos braços da
Monarquia para a cama da República sem convicções
inabaláveis. Se, por um lado, a febre do título refere-se
à febre amarela, por outro, indica uma idéia de movimento
e de agitação.
Ter febre significa estar fora
do estado normal, num estado de semiconsciência. O adjetivo "amorosa"
igualmente permite duas leituras. Indica uma perda da razão em nome
da paixão e igualmente sinaliza rumo ao autêntico momento
de encantamento que todo sentimento do novo carrega.
Ao mostrar a passagem da Monarquia para a República, Eustáquio
radiografa qualquer processo de mudança. O romance alerta que é
impossível instituir o novo sem conservar certos aspectos do antigo
e questiona o tema com um estilo diferenciado e uma trama desenvolvida
com bom-humor e fina ironia.
Jornal da Tarde,
8 de setembro de 2001 |