Bandalheira


Sérgio Castanho



Terminei de ler A Febre Amorosa, do "campinomineiro" Eustáquio Gomes. Mineiro até debaixo dágua, pelo estilo sem retórica, pela fala mansa que escorre do espírito sem névoas e pelo parentesco que o liga a todos os drummonds que um dia saíram de Minas e se fizeram ao largo carregando só a literatura por bagagem. E campineiro não sei por quê, embora suspeite que seja por mineirice adaptativa, síndrome que acomete também Benito Juarez e tantos outros que fazem de Campinas, depois de Belo Horizonte, a segunda maior cidade de Minas.

Não vou fazer crítica literária. Quem quiser saber das razões "técnicas" que fazem do romance de Eustáquio Gomes uma obra com lugar assegurado na história da literatura brasileira, que leia a revista Veja número 838. Uma das mais rigorosas do país em sua crítica, essa revista eleva A Febre às alturas e na mesma edição desanca com o último livro de poesia de ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade. O que também não está certo, porque Drummond a esta altura já conquistou a imunidade literária, tornando-se inatacável. Qualquer deputado com 20 mil votos conquista a imunidade parlamentar. Drummond, com mais de 20 mil versos perfeitos, tem direitos adquiridos à imunidade literária, à impunidade lingüística e à glória eterna. Amém.

Isto de passagem. Porque o assunto é mesmo Eustáquio e sua Febre. Dizer que o romance é excelente é dizer pouco, porque as palavras de louvação perderam peso na sua trajetória semântica. Dizer que o romance, de tão saboroso, se lê numa só noite é abordar uma obra de arte pelo seu lado pitoresco, o que também é pouco.

O que me parece fundamental é que o livro de Eustáquio Gomes é radical. Há nele um compromisso de raiz com o novo. Por isso sua leitura não permite que a terminemos ilesos. Ela subverte os padrões com que a iniciamos e vai nos acumpliciando com seus caminhos (e principalmente seus descaminhos). Subversiva e aliciadora, ela está a serviço da política bandalha, o que de resto pode-se ler no rótulo: "A Febre Amorosa — romance bandalho".

Ninguém se engane. A bandalheira do romance de Eustáquio Gomes não tem nada a ver com sacanagem vulgar. Seu bandalho, primo-irmão do pícaro, é postura erótico-estética. Quem termina de ler um grande livro como A Febre Amorosa vê a vida com outros olhos. Neste caso, com olhos bandalhos. 

Aos moralistas de todo gênero, preocupados em estancar a bandalheira, sugiro que providenciem rápido uma vacina, pois esta Febre é altamente contagiosa.

Diário do Povo, 14 de outubro de 1984