Campinas do século XIX, reconstituída com erotismo



Uma cidade capaz de construir um teatro só para ver Sarah Bernhardt. Que enviara seus “moços fidalgos” para contratar temporadas líricas. Cujos barões importavam da Itália e da Áustria projetos arquitetônicos inteiros para seus palácios, materiais de acabamento inclusive. Uma comunidade que discutia em francês na Câmara de Vereadores e queria ser capital. Até que vem a febre amarela, dizimando a população, matando os sonhos e trazendo de volta o pesadelo medieval da peste. A trágica Campinas do final do século XIX é ambiente, cenário e fluido vital de “A Febre Amorosa”, de Eustáquio Gomes, lançamento da EMW Editores que inicia sua coleção “Tirando de Letra”.

A ação de “A Febre Amorosa” se dá no auge da epidemia e conta, no termo de um folhetim, uma história densa de erotismo: o adultério de Angélica, a insatisfeita esposa do Barão Da Mata, com um médico sanitarista. Ficção, mas povoada de episódios e personagens reais. “A Febre Amorosa” é marcada pela fina ironia do autor e a história é contada três vezes com abordagens diferentes. Os personagens são tratados evitando-se o caminho da ficção da época: não há no texto caricaturas ou estereótipos. As pessoas são apenas e exatamente isso — pessoas comuns. Mesmo Da Mata, o velho barão, para quem a traição acaba sendo uma boa e sobretudo mansa solução.

Há personagens vivos perambulando pelas novas-velhas ruas de Campinas. Um deles, J. B. Canastra — “a múmia, pela idade e pela pele ruim” — seria o último representante do ranço conservador, desmitificado pelo picante folhetim e que, no livro, morre em acidente quando se preparava para exibir a seus pares de uma academia de letras a última monografia de sua lavra. De resto, a Campinas mostrada por Eustáquio Gomes pode nem mesmo estar desaparecida no tempo.

O livro, que será lançado hoje, às 20 horas, nos salões do Jockey Club de Campinas, já tem um destino certo: será transformado em tema de ópera, pois o regente Benito Juarez o leu, gostou da história, e convidou Eustáquio para escrever o libreto para que a Orquestra Sinfônica de Campinas possa futuramente montar a ópera. Benito também levará a Orquestra de Câmara da Unicamp para o lançamento do livro, para tocar composições de Carlos Gomes e de seu irmão Santana Gomes, aliás também personagens do romance. Este é o quinto livro de Eustáquio Gomes, de 31 anos, que iniciou na literatura em 1975 com uma coletânea de poemas, “Cavalo Inundado” — e mereceu elogios de Carlos Drummond de Andrade —, além de um livro de contos, uma novela e um ensaio biográfico sobre Ernest Hemingway.

O Estado de São Paulo, 12/09/1984