A arte de divertir e edificar em Eustaquio Gomes


José Nêumanne


Existe uma regra tácita que não costuma ser desrespeitada na literatura: todo autor de vanguarda é, acima de tudo, um chato, com o perdão da má palavra.    Com o respeito que merece o leitor do Estado, digamos que seja um esnobe, um sujeito de má catadura, de maus bofes, sempre pronto a submeter o coitadinho do leitor a penosos exercícios e malabarismos semânticos, de preferência em línguas mortas ou, no mínimo, moribundas. Isso também favorece a consagração de banalidades. Quem quiser graça, leveza, beleza e ironia, quem quiser lazer, sexo e suingue deve procurá-los naqueles romancinhos água-com-açúcar que as donzelas liam, naquele tempo em que ainda havia donzelas. Certo? Errado! Quem pensa assim é porque nunca se dedicou ao delicioso exercício de ler Eustáquio Gomes. 

Eustáquio Gomes é um mineirinho boa-praça, daqueles de "cuspir no borrai", no dizer típico e gracioso do coronel Chichico Cambraia, natural de Oliveira, terra natal do jornalista Fernando Mitre. Moço fino, de conversa fácil, ele se dá ao luxo de produzir literatura de primeira água. Leitor arguto, ressuscitou os velhos hábitos literários escrevendo um folhetim, ao estilo dos antigos, em plenos anos 80: Jonas Blau. Talvez seja de bom alvitre explicar para os mais jovens que folhetim era um uso em voga no século 19, quando os jornais publicavam os capítulos de um romance, a cada semana, como hoje a telenovela é apresentada ao público televisivo a cada dia. Por isso, se diz da novelinha das 8 ser ela "folhetinesca". Publicado em capítulos por este Caderno 2, a ficção de Eustáquio, narrando a saga do herói mineiro que se refugiava numa ilha do Pacífico, foi impressa, costurada e encapada em livro pela Editora Brasiliense em sua coleção popular Cantadas Literárias, em 1986. 

Dois anos antes, a EMW Editora já havia apresentado o mesmo autor em outro folhetim de sem-vergonhice explícita, intitulado A Febre Amorosa. A Geração Editorial, filha natural de uma das letras da editora original, E de Emediato, Luiz Fernando, primeiro editor deste caderno e dos capítulos de Jonas Blau nestas venerandas páginas, agora traz uma nova edição do texto que narra com humor finório e uma alta dose de malícia a saga da condessa virgem que se tornou amante do médico sanitarista, mandado pela autoridade pública federal para debelar os malignos efeitos da febre palustre que, juntamente com os ideais republicanos, literalmente incendiou a pacata província de Campinas nos agoniados estertores do Segundo Império. 

Escrito, digamos, em pílulas (ou em doses homeopáticas, se preferir o impávido leitor, Vossa Excelência), o texto é claro, escorreito, de graça irresistível e de tirar o fôlego, como deve ser qualquer narrativa, na opinião de um sujeito que conhece, um certo colombiano chamado Gabriel García Márquez. Mas é isso tudo, meus amigos, meus inimigos, mas sem fazer nunca em momento algum uma concessão que seja ao que o poeta Mário Chamie chama de "narrativas previsíveis". Como um mosaico mourisco da Alhambra, o romance é composto por pedrinhas minúsculas que se repetem sem cansar e se reúnem com lógica e sem obedecer à ditadura da linearidade. Como um bom texto de vanguarda, ele não se enquadra na trama clássica com começo, meio e fim, mas, ao contrário, vai e vem, sai e volta, sem, contudo, por um instante que seja, deixar de prender a atenção e de despertar o deleite do leitor. 

Rigor - Eustáquio é um mestre da ironia, como o fora um certo bruxo do Cosme Velho - e quem o comparou com Machado de Assis não foi este escriba sem mérito nem diploma, mas Fausto Cunha. E, como registrou outra crítica de respeito e renome, Mirian Paglia Costa, à época de seu lançamento, já lá se vão 16 aninhos, é implacável com as adiposidades do palavreado, recortando o texto sob medida de um terno que ficaria apertado até para conter a ossatura longa de um magro inefável como nosso vice Marco Maciel. 

A mesma Geração Editorial, que resolveu dar ao livrinho popular um formato mais bem acabado nesse relançamento, também lançou o romance O Mapa da Austrália, mais um típico exemplar da literatura do mineirinho que agora anda a pesquisar a saga de seu ex-chefe Zeferino Vaz, plantador de universidades. Essa ficção, cuja primeira edição veio a lume há três anos, não teve a mesma fortuna crítica de sua companheira de reedição. Mas merecia. E merecia ainda mais. Pois se trata de puro primor. 

Nesse livro, ainda mais do que no outro, o autor conseguiu atingir o objetivo quase impossível de ousar na narrativa, sem aborrecer o leitor. As aventuras eróticas de uma despudorada senhora que tinha na coxa uma mancha semelhante ao mapa da Austrália são desfiadas ao longo de um texto estruturado como um quebra-cabeça, montado pelo leitor com volúpia. A leitura desse romance parece ser um desafio maroto entre quem o escreveu e quem o lê. Cultor do riso à socapa, o autor carrega nas descrições eróticas sem apelar, o que não é fácil, divertindo-se com truques de narrador, mas que ele usa e nega, numa espécie de jogo de cabra-cega, em que surpresas e redundâncias compõem um caleidoscópio literário multicolorido e brilhante. 

Esses produtos da Geração Editorial contêm muito mais qualidade e novidade do que a maioria dos lançamentos editoriais brasileiros, que oscilam entre o facilitário da narrativa previsível e apelativa dos folhetins chinfrins, nos quais os escritores tentam reproduzir os chavões da ficção televisiva, e o vanguardismo empolado, truque usado por muito autor famoso para tentar ocultar no biombo da complexidade o pouco que de fato tem a dizer. 

A obra de Eustáquio Gomes é a prova concreta de que as formas tradicionais da literatura ainda estão longe de ter extintas suas potencialidades de encantar o leitor, por mais variedade e fascínio que ofereça o universo de outros meios que a revolução tecnológica oferece. A literatura dos folhetins ainda tem vez na era da Internet, desde que os cultores do gênero tenham sensibilidade e graça na caça ao brilho, sem se deixarem encandear por ele.

 O Estado de S. Paulo, 1 de setembro de 2001