Nos tempos do império
Carlos Ribeiro
A ironia fina e o estilo conciso são algumas características
que saltam aos olhos logo nas primeiras linhas do romance A Febre Amorosa
(Geração Editorial, 144 páginas, R$ 18), de Eustáquio
Gomes. As evidentes qualidades do texto, aliás, tornam surpreendente
o fato de Gomes (nascido em Campos Altos, Minas Gerais, em 1952, mas residente
há muitos anos em Campinas) ainda ser um autor pouco conhecido,
embora já venha colecionando fartos elogios da crítica. Fausto
Cunha, por exemplo, lhe atribui "a finura irônica de um Machado de
Assis", identificando nele "uma das mais brilhantes revelações
da prosa brasileira nos últimos anos".
A trama de A Febre Amorosa - misto de parábola e paródia,
como assinala o brasilianista Malcolm Silverman, em Protesto e o Novo Romance
Brasileiro- desenrola-se numa Campinas assolada pela febre amarela, em
1889, ano da Proclamação da República. O autor retrata
as turbulências políticas do fim da Monarquia, numa abordagem
minimalista na qual o macrocosmo da sociedade é mostrado através
dos pequenos dramas e idiossincrasias dos personagens.
Através de pequenos capítulos numerados, alguns de apenas
uma linha, Eustáquio retrata diversos episódios, mas tendo
como tema central o romance escandaloso do epidemiologista republicano
Luís Alvim - que chega à cidade para tratar os enfermos -
com Angélica, casada com o barão Da Mata, velho reumático,
símbolo da Monarquia decadente.
O paralelo entre os personagens principais do romance e o período
histórico em que vivem, são bem definidos por Silverman,
quando ele afirma ser Angélica "a corporificação de
um império moribundo e decadente" e o esposo envelhecido, traído
e politicamente reacionário, uma representação das
atitudes ineficazes e das aparências desgastadas do ancien régime,
da mesma forma que Alvim "simboliza a república emergente: malpreparado,
e pouco inclinado para qualquer mudança significativa para melhor".
É, pois, nessa atmosfera decadente, de intrigas e conspirações,
nesse cenário de pânico coletivo, que Eustáquio Gomes
constrói um folhetim que reúne história, política
e fortes pitadas de erotismo, como se pode ver no seguinte trecho: "Reinou
alguma tensão no quarto quando Purezinha se aproximou, nua, de Angélica,
e enfiou-lhe com delicadeza a mão por baixo do vestido, introduzindo
o dedo mínimo onde as sombras se dobravam, úmidas. Imperturbável:
estava sendo paga para isso e ia fazê-lo direito. Angélica
não moveu um músculo. Alvim foi à toilette e ao voltar
deu com ambas estendidas na cama, pele contra pele. Acercou-se da prostituta.
Devagar começou a lambuzá-la de doce de cidra, dos pés
à cabeça. Em seguida obrigou Angélica a lambê-la,
enquanto ele, entrincheirado às costas de uma ou de outra, possuía-as
desse ou daquele jeito".
Definido como "romance bandalho", A Febre Amorosa traz, já no seu
título, uma referência implícita à íntima
relação entre Eros e Thanatos - no caso, a febre erótica
que consome os personagens fictícios da história e a febre
amarela que, de fato, dizimou a população de Campinas durante
os anos finais do Império. Como disse Luiz Fernando Emediato, na
orelha do livro, "um vaudeville que desperta o riso, afaga a inteligência
excita a imaginação".
A Febre Amorosa foi publicada originalmente, como folhetim, em capítulos,
nas páginas de um jornal de Campinas. Em 1984, acrescido de mais
dois capítulos, teve sua primeira edição em livro
por uma pequena editora, passando quase despercebido. Somente este ano
é que veio a merecer uma edição bem-cuidada, com bela
capa de Victor Burton, pela coleção Território Brasileiro,
da Geração Editorial. Vale acrescentar que esse é
o décimo livro de Eustáquio, autor de livros de poesia, contos,
romances e ensaios, dentre os quais se destacam os textos de ficção
Os Jogos de Junho (José Olympio, 1981), Jonas Blau (Brasiliense,
1986) e O Mapa da Austrália (Geração, 1998).
A Tarde, 25 de dezembro de 2001 |