Opacidade política e lucidez do romance 
 

Roberto Romano


Em tempos de crise, os acadêmicos abrem seus canhenhos e alfarrábios à cata de úteis ou inúteis mezinhas políticas. Livros de Platão, Aristóteles, Maquiavel, Kant, Hegel, Marx, Tocqueville, Arendt e menos cotados brotam das prateleiras e sofrem cortes profundos, violências diversas, torturas. Não raro, são conduzidos a declarar o contrário do que pensaram os autores,  para maior glória dos partidos ou facções. Amém. Raciocínios longos e complexos transformam-se, pela mágica retórica, em ladainhas seguidas de jaculatórias fulminantes. As repetições enfeitiçam cérebros e almas, conduzem ao “emburrecimento” coletivo, aos dogmas destemperados, às censuras. É o tear das Parcas que regem nossa vida coletiva, dominada pela mediocridade. Entre o sublime Platão e o espetáculo da Câmara Federal, onde se reúnem os mais toscos deputados da história brasileira, há mais do que um abismo. Há mudança de registro anímico. No grego brilham a inteligência e a cautela. No Parlamento nacional reverberam a tolice, a má fé, a esperteza de vistas curtas e grossas. A profissão acadêmica no Brasil é inglória porque se destina, acima de tudo, a justificar atos mesquinhos de políticos que não podem ser nomeados estadistas: sua ambição é privada (com a polissemia do termo) e só atende aos seus interesses pessoais. Não por acaso o Relatório do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (21/04/2004) indica o Brasil em primeiro lugar na melhoria do processo eleitoral e no acesso pelo voto a cargos públicos, mas fica em 15º lugar, no total de 18 países pesquisados, na adesão popular aos princípios democráticos. Para avaliar o grau de apoio às instituições democráticas no Brasil, foram feitas mil entrevistas com habitantes de cidades. Os entrevistados foram classificados como "democratas", "não-democratas" ou "ambivalentes" em relação a três aspectos: apoio às instituições representativas, à democracia como sistema de governo e  a limitações ao poder do presidente. O país apresentou 30,6% de democratas, ficando em 15º lugar numa classificação encabeçada pelo índice de 71,3% do Uruguai e à frente apenas de Equador, Paraguai e Colômbia (Cf. http://www.pnud.org.br).

Aduladores profissionais e silentes oportunistas, parte dos nossos acadêmicos tem lugar marcado no Inferno, onde será acolhida pelos gritos de Alessio Interminei: “Qua giù m´hanno sommerso le lusinghe, ond´io no ebbi mai la lingua stucca” (Aqui me afogaram as lisonjas, das quais nunca minha lingua se cansou”. Dante, Inferno, 18, 124-125). Quando leio citações de pensadores, em nossos analistas políticos, enxergo, na maioria, estupros noéticos. Marx é obrigado, pelos “especialistas”, a abençoar programas favoráveis às finanças, em detrimento das indústrias, Arendt abençoa as piores faltacruas contrárias à democracia, Spinoza (inclusive seu nome é estuprado pelos comentadores brasileiros) recebe o papel de médium que apresenta a falta de saber como elogiável no dirigente político. Se quem deveria pensar age como feiticeiro do verbo, porque maravilhar-se quando a população se levanta contra a democracia? Unidos, acadêmicos bajuladores e políticos corruptos fazem a nada santa aliança que devora, lenta, mas inexoravelmente, a vida pública nacional. Estamos perto das eleições,  devemos prestar muita atenção nos indivíduos que remetemos para o Congresso e para os Palácios de governo.

No fim de ano deixei os diálogos platônicos de banda. Abri um livro estratégico. Trata-se de livro estranho, nem romance nem análise teórica ou histórica, escrito fascinante e obra de Eustáquio Gomes. A ele voltarei em outras colunas. Num diagnóstico certeiro Eustáquio medita sobre a derrota de Rui Barbosa em 1913: ele perdeu “porque em 1913 era absolutamente prioritário agir a falar. E porque em 1913 seus belos discursos góticos já não causavam a mesma impressão de antes”. Rui entra na comunhão dos nossos perdedores ilustres, como o conde D´Eu “um grande imprevidente” que na crise escrevera a uma nobre da França : “la politique est tout-à-fait calme” (a política está totalmente tranqüila). Finalmente, uma descrição perfeita do golpe “republicano”. Dentre os cativantes quadros da política brasileira (dos mais ferozes, diga-se) leio com melancolia as linhas em que o autor descreve o exílio de Pedro II: “O velho mergulhou sonolento na neblina do Rio de Janeiro, seguido da família imperial e de alguma criadagem. O navio surgiu como um rochedo sombrio na madrugada espantosa. Antes de embarcar deu a mão a seus depositores e disse a frase famosa: ´vocês são uns loucos´. Foram repetir essa frase a Deodoro, que a ouviu calado”.

É isso. Quem deseja entender a crise atual (a mesma, desde 1827) leia A Febre Amorosa (São Paulo, Geração Editorial, 1984/2001) de Eustáquio Gomes. A beleza do texto traz a sabedoria do pensamento. Lucidez insuportável para os morcegos que infestam os campi, mas vital para quem deseja entrar na alma febril do mundo político. 

 Ucho Info, 17/06/2007