Alguma coisa dentro do coração
Paulo Krauss
Visitar o passado sempre é
bom. O ideal é uma visita presencial, e não apenas na memória.
Voltar à casa onde se passou a infância, rever pessoas com
quem convivemos 20, 30, 40 anos atrás; saber que muitas delas nem
mais existem, mas também descobrir como foram suas vidas enquanto
a nossa tomou rumos distantes. Somente quem já fez isto - retornou
a algum lugar importante de sua história - conhece o sentimento
que pulsa no peito, uma emoção forte, que não é
de alegria nem de tristeza (possivelmente, a união dos dois), alguma
coisa lá dentro do coração que talvez não tenha
recebido ainda um nome específico, e quem sabe seja melhor assim
para que continue especial. É essa coisa lá dentro do coração
que se sente ao ler a narrativa “A viagem de volta” e os demais 39 "cromos"
do livro Paisagem com neblina e buldôzeres ao fundo, de Eustáquio
Gomes.
A princípio, livros com
títulos compridos e gêneros inexistentes soam estranhos. Alguns
ficam ainda mais esquisitos depois de lidos. A leitura deste livro de Eustáquio
Gomes, ao contrário, deixa o título agradável e a
denominação cromo, simpática e justificável.
Não são um romance nem uma novela fragmentados, muito menos
contos, mas são colagens que se somam e formam um belíssimo
álbum de cromos.
Eustáquio Gomes fez uma
viagem ao seu passado. Apesar de este escritor mineiro ser autor de 13
livros, Paisagem com neblina... está longe de ser a história
de uma grande personalidade, mas isto não é nenhum demérito.
Eustáquio se coloca como o homem comum que é, como é
a maioria das pessoas, e é nessa sinceridade que seu trabalho ganha
força.
A narrativa autobiográfica
do autor acaba se encaixando na história de muitos que, como ele,
nasceram e se criaram em pequenas cidades do interior e buscaram a partida
como um novo significado, não exatamente de fama ou sucesso, mas
apenas diferente.
O álbum de cromos começa
na infância, com a distante relação do personagem com
o pai, que não queria que o filho caçasse passarinhos, por
serem criaturas de Deus. Mas o menino questionava por que então
o pai matava porcos a facadas, mostrando desde pequeno a inquietação
com as regras provincianas. Foi por causa dos passarinhos que a relação
entre pai e filho estremeceu por um período, mas o garoto, ardiloso,
ligou para a rádio local e ofereceu ao pai uma canção
que amoleceu seu coração.
Da outra vez, foi a mãe
que o salvou da surra do pai porque o menino ficara escondido atrás
dos engradados no bar da cidade quando os marmanjos baixaram as portas
para se divertir com mulheres da vida. Mas o piá foi descoberto
e fugiu aos pulos. Acontece que as esposas dos marmanjos souberam da história
e cercaram sua casa querendo que ele dedurasse os maridos que participaram
da sacanagem com as moçoilas.
A relação com a mãe,
naturalmente, merece trechos especiais no álbum. O cromo “A mãe”,
entretanto, é um dos mais frios do livro, descrevendo em forma de
diário anual a fase idosa em que começam as quedas e os desmaios
até o internamento final, num roteiro tão comum a quem chega
aos 83 anos de idade. Assim como só chorou a morte da mãe
quatro dias depois, o autor-personagem deixa perceber pelo texto deste
cromo que ainda tem dificuldade com o assunto, misturando a frieza com
uma emoção contida. O mesmo não acontece no cromo
em que Eustáquio retrata a morte do pai, em que o texto é
mais rico e a emoção aflora com mais intensidade, talvez
por ser o momento de uma homenagem e de uma admiração nunca
expressadas em vida, já que a relação entre pai e
filho, apesar de amigável, sofria com a dificuldade de ambos de
revelar seus sentimentos.
A vida simples de Eustáquio
Gomes ainda traz momentos de indefinições, como quando ele
vai para o seminário, onde passa seis meses, ou quando trabalha
em um bar, já em Campinas, cidade que escolheu para um novo significado
em sua vida. No seminário, descobre as angústias para manter
a castidade, principalmente quando participa de procissões e é
provocado pelas meninas.
No bar, o trabalho rude esconde
o aspirante a poeta, que parece encontrar o dia mais feliz de sua vida
ao ter um poema elogiado por um professor. Depois de conseguir estágio
num jornal, é para o mesmo bar que o futuro jornalista volta correndo
para mostrar a primeira matéria com seu nome escrito, para o desdém
do ex-patrão e dos ex-companheiros de trabalho.
Todo mundo que escreve já
passou por esta cena um dia: pegar o jornal logo cedo e delirar com o seu
primeiro texto assinado. É um momento mágico, um misto de
alegria e orgulho, que o tempo transforma em ilusão ou vergonha.
Ilusão, obviamente, para aqueles que a profissão não
vinga. Vergonha para os que continuam a carreira e percebem a ingenuidade
dos primeiros escritos.
O fato é que Eustáquio
Gomes não teve vergonha de contar este momento de orgulho juvenil.
Assim como não teve a ilusão de querer transformar Paisagem
com neblina e buldôzeres ao fundo em um grande romance de formação.
Foi apenas sincero e contou sua vida simples e saudável de forma
honesta. Mas o esmero no texto e a busca de uma linguagem que construísse
a ponte entre o garoto do interior de Minas e o profissional das letras
de uma cidade importante fazem deste livro uma obra agradável e
sentimental.
Isso fica mais evidenciado em “A
viagem de volta”, único cromo extenso (11 páginas), que encerra
o livro. O autor transformado em personagem retorna, agora adulto, à
cidade da infância, resgatando lugares que persistem na memória.
É difícil segurar a emoção ao entrar na casa
em que morava com os pais.
A casa é praticamente a
mesma. Ali fica um quarto, depois o outro, e lá a cozinha, aonde
se chega descendo dois degraus castigados pelos anos. Aqui havia uma janela
e debaixo dela ficava a Elgin que minha mãe pedalava enquanto eu
sonhava acordado de borco num banco de madeira.
Só quem já ficou
num banco de madeira observando a mãe costurar sob a luz da janela
sabe a força desta cena e destas palavras de Eustáquio Gomes.
Rascunho, Julho de 2007
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