VIAGEM AO CENTRO DO DIA
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ENTREVISTA 
"Um diário é qualquer coisa"
 

Eustáquio Gomes desvenda 
a obsessão das notas íntimas 



O crítico Alcir Pécora cita dois êmulos da persona que surge dos diários: o amanuense Belmiro, personagem de Cyro dos Anjos, e o Bartleby de Melville. Você concorda? Ou considera outros êmulos? 

Quando tomei conhecimento do texto de orelha, corri a ler O amanuense Belmiro e o Bartebly. Não há referência deles nos diários porque não os tinha lido ainda. São desses livros muito falados cuja leitura fui adiando. Espicaçado pela comparação do Pécora, li para saber quem eu era. Do Bartleby digo pouco, salvo que é uma obra-prima. Como Bartleby, trabalho em escritório e tenho minhas obsessões, mas, ao contrário dele, estou pronto para bater em retirada. Da leitura do Belmiro resultou que tomei como êmulo, não propriamente o amanuense, mas o próprio Cyro dos Anjos. Quase imediatamente li dele o Abdias e fiquei ainda mais impressionado. É um enorme escritor e um grande estilista. Temos em comum talvez um certo traço mineiro, aquela coisa da burocracia e o vezo do diário como forma. Depois descobri que nascemos no mesmo dia, 5 de outubro, só que separados por uma distância de 46 anos. 

O diário é um lugar de ressentimentos? 

Escrevi o diário como um "romance do cotidiano", levando em conta a forma e escolhendo os fragmentos que convinham à composição. Dizer tudo seria cair no sem-forma. Escolher entre uma coisa e outra é uma maneira de reinventar o dia, isto é, a vida. É também um ato de liberdade, mesmo não sendo grande literatura. É capaz de elevar o espírito mesmo quando o rebaixa. Os ressentimentos podem entrar nessa cota de rebaixamento, mas de todo modo não são os fatos que importam, e sim a maneira de relatá-los. Pécora compreendeu isso e creio que nasce daí sua evocação de Bartleby a propósito desse diário obsessivo. Ao se recusar a fazer as tarefas comuns do escritório, Bartleby não procedia assim por preguiça ou rebeldia, mas para ser fiel a uma espécie de estilo interior. 

O diário começa em 1972 e se encerra em 2005. Você o abandonou? 

Aí está: não abandonei o diário. Nunca vou ser capaz de abandoná-lo. A um amigo que indagou de minha obsessão pelo gênero eu disse que para mim não se trata de um gênero, mas de uma maneira de viver, ainda que às vezes a vida se resuma nisto: escrever o diário. 

O refinamento do estilo chama a atenção. Você reviu o diário para a publicação? 

Corrigi imperfeições de linguagem, podei, limei, suprimi, seccionei, juntei. Mas mantive o conteúdo intacto e não acrescentei um único fato. Apesar disso não posso dizer que o resultado é um retrato fiel daqueles 34 anos, pois os critérios de seleção conferem ao texto uma objetividade e um sentido de foco que obviamente minha vida não tem. 

E por que a decisão de publicá-lo? Você teve medo? 

Sempre escrevi para publicar. No caso do diário havia um certo pudor e muitas dúvidas: quem vai se interessar por isso? Que diabo de coisa pretensiosa é essa? Quem diz que este livro de horas não vai acabar me esterilizando? A história foi se agravando com o tempo, até que cheguei a três décadas de diários. Aí comecei a dar ouvidos aos sonhos, iniciei paralelamente um diário de sonhos e anotei 420 sonhos em três anos. Os sonhos são o inconsciente em estado puro, capaz de nos dizer coisas a partir dos traços de caráter que às vezes negamos na chamada vida vígil. E os sonhos me repetiam que, se eu aspirava a ser escritor, o que desejava acima de tudo era publicar o diário. Levei a coisa a sério e, veja só, não demorei a encontrar no caminho um editor maravilhoso, o jornalista e escritor José Nêumanne, que achou que aquilo dava um livro e podia interessar a certa categoria de leitores. Sobre este último ponto os sonhos nada dizem. 

Você leu muitos diários. Quais os mais importantes? 

O primeiro diário que li foi o do Ascendino Leite. Intitulava-se Durações, e eu tinha doze anos na época. Fiquei fascinado com a forma. Então era possível alguém narrar sua vida dia após dia, como se fosse um romance? Aos 19 topei com o diário de Kafka, que ainda hoje é um dos livros de minha predileção. Depois vieram outros, sempre diários de escritores: Amiel, Papini, Sartre, Virginia Woolf, Pavese, os cadernos de Camus, Sylvia Plath, Gombrowickz e aquele extraordinário livro de notas de Fernando Pessoa que é o Livro do desassossego. Entre os brasileiros, o melhor diário, a meu ver, é o de Lúcio Cardoso. Mas não é um gênero muito cultivado no país. 

O seu é um diário que às vezes se aproxima do tipo 'journal' de vida literária. Você se preocupou em poupar pessoas? 

Mantive algumas maledicências, mas a maioria cortei. Aliás, eu poderia ter feito um livro só de maledicências, mas essa parte trash do diário realmente não vale a pena. De vida literária também não posso falar, pois não freqüento ninguém. A rigor, o que esse livro faz é contar o esforço anônimo de um jovem de província que parece fazer questão de se tornar escritor. Na maturidade, o escriba admite que ainda não chegou lá, e talvez por isso mesmo tenha resolvido publicar o diário em vida, apostando menos nos pósteros e mais nos seus contemporâneos. Digo isso na introdução: que era preciso não esperar pela posteridade para dar testemunho de uma certa maneira de fracassar. 

Você afirma que o seu não é um diário de caráter olímpico, que apresenta uma noção de sucesso e de vida realizada. Você não se acha um escritor realizado? 

É verdade que neste diário há mais histórias de fracasso que de sucesso. Quando me ocorrrem êxitos, em geral pequenos, não me furto de relatá-los. Não tenho nenhuma intenção de me vitimizar. Em 2005 registrei, por exemplo, que uma novela minha (A febre amorosa) havia sido traduzida para o russo. Achei isto significativo porque era um contraponto a meu rosário de dúvidas sobre a validade do que escrevia. Mas disse também que aquilo era um golpe na minha modéstia. Provavelmente por baixo da modéstia há um baita orgulho. Mesmo assim prefiro não fazer como aqueles que, em seus diários, levam um pódio debaixo do braço para de vez em quando subir nele e exibir o peito cheio de medalhas. 

O escritor Alan Pauls escreve que, mais que tudo, o que move alguém a escrever um diário "é um desejo que cansa mas não morre: o desejo de ser sincero". 

Concordo. Mas o diário pode ser também outras coisas, como por exemplo, banco de penitentes, sala de recuperação, quarto de exortações, lugar de retirada, tábua de salvação, altar de epifanias, geena, pódio olímpico e, o que é mais freqüente, confessionário com direito a absolvição. Pode ser também uma carta endereçada ao futuro com cópia para o passado, já que os diaristas dialogam entre si e falam sobretudo com os mortos. Sua estrutura livre permite, na verdade, que o diário seja qualquer coisa. Por isso acredito que, como qualquer narrativa, a qualidade de um diário depende muito mais da linguagem que propriamente do conteúdo. 

Você acaba de publicar, também, 'Paisagem com neblina e buldôzeres ao fundo', que define como uma reunião de cromos. Cromos? 

São crônicas com estrutura de pequenos contos. Ao escrevê-las, já pensava em termos de unidade temática e de aproveitamento em livro. Contam da infância, da adolescência e do retorno do narrador, já maduro, ao povoado onde nasceu. A denominação cromos é uma liberdade que me permiti (pensando nos cromos do poeta B. Lopes), na suposição de que aquelas pequenas narrativas oferecem algum colorido, ou seja, o colorido dos quadros do passado que a memória reteve. 

Ao longo do diário, fala-se de um livro em produção, 'O biógrafo', salvo erro. Em que ponto está o projeto? 

Venho adiando esse livro há 20 anos e ainda não pareço estar preparado para ele. Creio que é um daqueles projetos colocados muito acima de minhas forças e que servem antes para estabelecer uma espécie de padrão-ouro, uma miragem a ser perseguida. O irônico é que os livros que escrevi desde então, cinco ou seis obras mais ou menos obscuras e que intimamente considerei de entressafra, terminaram por ser o trabalho verdadeiro, o trabalho possível. É sempre assim: a gente imagina parágrafos cinzelados e termina escrevendo sentenças ordinárias. Até que se descobre que aquela é a nossa medida. Mas não vou renunciar à miragem, ao padrão-ouro, mesmo sabendo que o resultado será diverso. E o título mudou. Até idéia em contrário, o romance vai se chamar O diário jubilaico de Sidraque Matias. Estou recomeçando tudo do zero.

Jornal do Brasil, Caderno “Idéias”, 11/08/2007