Pequenos nadas
Miguel Sanches Neto
Escreve-se um diário para
dar consistência ao tempo, essa entidade abstrata. Mas escreve-se
também para se dar consistência no tempo, afirmando uma presença
mesmo quando se vive secretamente. Leitor de diários e outros textos
autobiográficos, Eustáquio Gomes (1952) é um cultor
deste gênero. Levando uma vida discreta em Campinas, onde aportou
jovem e de onde pouco saiu, Eustáquio não colecionou aventuras
para narrar, não conviveu com figuras legendárias e não
participou de movimentos artísticos, e talvez por isso mesmo sejam
tão interessantes os fragmentos de sua existência recolhidos
em Viagem ao centro do dia (A Girafa, 2007), diários que abrangem
o período de 1972 a 2005, uma vez que o autor eliminou os textos
matinais, talvez por revelarem outros dramas.
O título é uma profissão-de-fé:
a anotação como centro do dia. Localizá-la e fixá-la,
eis a obrigação do diarista. Nesta tarefa, sobressai sua
principal matéria de reflexão: a impossibilidade de exercer
o dom para a escrita. Da primeira à última página,
do namoro com a futura e sempre presente esposa, ainda no início
da juventude, aos anos que antecedem a tão sonhada e permanentemente
adiada aposentadoria, ele sofre com a negação de seu projeto
íntimo. Conclui em 19 de agosto de 1972: “não tenho tempo
de escrever, e portanto não escrevo, eu que desejo ardentemente
consumir meu tempo escrevendo” (p.12). Em 10 de janeiro de 2005, relaciona
a alegria das férias a uma única atividade: “Estas férias,
se não posso considerá-las estupendas (escrevi pouco, fui
perturbado por tarefas extemporâneas...), foram certamente melhores
que as do ano passado” (p. 439). O drama é sempre o mesmo – tempo
e tranqüilidade para escrever. Em nome desses bens tão caros
ele deixou o Rio de Janeiro, onde conseguira boa colocação
de mercado, para voltar a Campinas, empregando-se na universidade. Com
o retorno, busca um lugar para escrever – primeiro a casa e depois um puxado
no quintal.
Neste útero periférico,
o escritor vai gerando seus livros, que não correspondem totalmente
a seu projeto literário. Narrativas pequenas e elípticas,
com grande atualidade, recebidas com aplauso pela crítica, mas insuficientes
para retirá-lo da sina de funcionário público, onde
morre um pouco a cada dia. Como antídoto, Eustáquio se afunda
ainda mais na burocracia, sacrificando-se a ela como forma de recusá-la.
Nos horários de folga, vai
lendo biografias, memórias e diários, comparando-se aos grandes
escritores: “Tenho 31 anos. Com essa idade Jack London era autor de vinte
livros e tinha um assunto” (p.61). O projeto de emulação
o leva a temer a morte. Qualquer sintoma de doença se apresenta
como ameaça à sua identidade mais profunda. Este medo encontra
um único lenitivo: a anotação nos diários.
Assim, os diários funcionam como recompensa, uma forma de escrever
quando não é possível produzir os livros imaginados.
Em várias passagens, Eustáquio afirma que o diário
pode vir a ser a sua verdadeira obra: “Se eu tiver que permanecer, será
pelo diário. Sinto prazer genuíno em escrevê-lo e é
possível que esta alegria se transmita a alguns” (p.90). Assim,
o que era compensatório e terapêutico vai se fixando como
expressão de um autor afeito à brevidade.
Esta concepção salvífica
do diário não atesta apenas a crença no cotidiano
vivido mas também no futuro. Os fatos são ralos nas suas
páginas, entram apenas os que têm vinculação
com o drama íntimo do escritor. A humilhação numa
mudança de dirigentes da universidade, os carinhos da esposa, a
degradação urbana pela violência, as leituras, as poucas
viagens, a morte de pessoas queridas, a insensibilidade dos editores, o
amor pelos animais, pelas plantas e pela casa, os sonhos que passam a ser
anotados... O escritor se agarra principalmente aos pequenos nadas e aos
sinais recebidos em sonho para alimentar o seu diário, experimentando
a vida transcrita nestas páginas não como fim último
de sua vocação, mas como uma forma de assegurar-se dela.
Muito mais do que fatos e idéias,
estes diários comunicam um desejo que nada pôde sufocar. Não
são relatos de um escritor que foi, mas de um escritor que, embora
esteja sendo, ainda será. Por isso o autor não deixou que
ele se transformasse em documento póstumo, interrompendo-o com esta
edição para que a obra sonhada possa se materializar.
Carta Capital, 2007
|