A lucidez dos bêbados
 

Eustáquio Gomes


Sou abstêmio mas sei reconhecer que os bêbados podem ser, por vezes, muito lúcidos. A vida está cheia de exemplos. Ia um amigo meu, o Vilallobos, por uma sinuosa estradinha mineira, sob chuva intensa, sem saber ao certo se chegaria a seu destino. Driblando buracos e atoleiros, parou num lugarejo para certificar-se de que a trilha seguinte dava passagem. 

— O senhor vá tranqüilo — disse-lhe um cavalheiro de suspensórios e gravata, dando toda a pinta de ser o figurão do lugar.

— Tem certeza? — insistiu o Vila preocupado com a aproximação da noite.

— Absoluta. Essa estrada eu mesmo mandei construir. Não tem erro.

Foi quando um sujeito que chegou trocando as pernas achou-se no direito de interferir: 

— Não caia nessa, meu chapa. A estrada é um sabão. Depois de um toró desse, ninguém passa. 

O figurão ficou sério:

— O senhor não dê ouvidos a esse pau-d'água. A estrada é boa. Boa não, excelente. — E voltando-se irado para o ébrio: — Suma daqui, vagabundo!

Meia hora depois, já noite fechada, o Vila patinava num lodaçal que se estendia, adiante, por quilômetros de lama. Foi uma autêntica sorte ele ter conseguido dar marcha-à-ré e retornar ao povoado. Estava dominado pelo sentimento de que, sendo a gravata um adorno insólito num lugar como aquele, devia ter desconfiado do cidadão e acreditado no bêbado. 

Mas talvez a gravata não tenha nada a ver com isso. Yeltsin, quando subiu naquele tanque em frente ao parlamento russo, há alguns anos, estava de gravata vermelha. E bebia como uma vaca (com o perdão das vacas) antes daquela sua operação complicada, hoje não sei. Mas o certo é que, quando as tropas golpistas avançaram, ele se postou diante delas e disse: "Não passarão". E não passaram mesmo. De modo que, no intervalo entre dois pileques, ele deu uma grande demonstração de lucidez e coragem. 

E sendo a coragem artigo difícil de achar, seja na Rússia ou em Minas, o biriteiro contumaz trata de conjugá-la com o senso de preservação pessoal. Está explicado por que, salvo exceções, o bebedor é o último que morre. É o que acompanha todos os enterros. Em meio ao desespero geral lá está ele, limpo calmo e lavado, segurando a alça do caixão. Não raro, na mão desocupada leva um maço de flores para a viúva. 

Carrega defunto para a cova, o etílico, mas não gosta de carregar andor. Ao menos, o Miguilim não gostava. Dizia dar azar. Era lá homem de acompanhar procissão debaixo de sol e chuva, que nem parelha de boi, morro acima e abaixo? Dizia isto aos brados, completamente chapado, para quem quisesse ouvir. E quando o padre inventou uma procissão em pleno Carnaval, Miguilim achou demais: saiu vociferando que aquilo era pecado, onde já se viu bloco religioso, aquilo ia acabar em castigo divino. 

Coincidência ou não, a predição foi certeira. Lá ia o cortejo morro acima entoando o Queremos Deus. No topo do morro, fazendo o papel do puxador que anuncia a canção seguinte, o padre grita para os fiéis: 

— Os Anjos! 

E a procissão, num uníssono esganiçado:— "Os anjos, todos os anjos louvam a Deus para sempre, amém!"

Quando já iam morro abaixo, cantando com fervor redrobrado graças à inclinação da descida, ninguém viu que apontava lá em cima a velha jardineira, com todo o ar de geringonça sem freios. O chofer chegou a buzinar e a gritar que se afastassem, mas o povo, inteiramente entregue à embriaguez da música, nada ouviu. O primeiro a pressentir a desgraça que estava para acontecer foi o próprio padre, que da margem do caminho se pôs a gritar "a jardineira, a jardineira, olha a jardineira, gente!".

Ora, era Carnaval e ninguém solapa o Carnaval impunemente, como vaticinara Miguilim. O povo, tomando a gritaria do padre por uma concessão inesperada, porém benfazeja, entrou a cantar de modo absolutamente frenético a marchinha de Benedito Lacerda, do Carnaval de 1939:

— "Ó jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu? Foi a camélia que caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu!" (bis).

Aliás não houve bis. Ficaram no primeiro refrão. Veio a coisa desembestada e — cataprum! Dos que foram apanhados não sobrou ninguém. Morreram, aliás, em plena alegria. O andor foi parar no topo de uma árvore. O padre se atirou para trás de uma moita. Um jornal deu a notícia com riqueza de detalhes. Só houve uma falha na reportagem: esqueceram de ouvir Miguilim. Ele teria coisas interessantes a dizer. Uma pena.