Bernardo menino
 

Eustáquio Gomes

Na semana em que seria hospitalizado para o implante de uma válvula cardíaca, transe cirúrgico do qual não despertaria, Bernardo Caro se pôs a rabiscar uns esboços de memórias que depois enviava a mim, em folhas soltas. Aquilo não me pareceu um bom sinal: dava a impressão de que ele estava se despedindo da vida. Escrevia à mão e a lápis, como antigamente. Escrevia sobretudo sobre a infância, como se desejasse voltar a ela ou, nela, reencontrar a saúde perdida.

Para superar o difícil que é acreditar que ele se foi, que não entrará mais pela porta de meu escritório e que já não almoçaremos juntos nem sairemos à caça de livros nos sebos de Barão Geraldo, folheio estas folhas manuscritas (algumas pela primeira vez) e tento compreender o que ele pretendia transmitir com elas. Há uma história de seus nove anos que eu desconhecia. Ele sonhava possuir um blusão de aviador que era moda entre os jovens, pois era o tipo de blusão que os pilotos americanos usavam então, 1940, o segundo ano da Guerra. Fermín, o pai, que naqueles tempos foi sucessivamente carvoeiro, verdureiro, santeiro, garapeiro e comerciante de ferro-velho, não podia prover tais luxos. Josefa, a mãe, sentindo a frustração e a tristeza do menino, fabricou para ele um blusão à base de sacos de açúcar, branqueando-os e costurando-os. E lá se foi Bernardo, orgulhoso de seu blusão, ao encontro dos colegas. Não sei que impressão causou. O manuscrito não diz. E já não tenho como perguntar isso a Bernardo.

Outra história conta como ele, sem dinheiro para o ingresso da matinê dominical no Cine República (comédias, desenhos animados e seriados), colocava à venda na sarjeta frente ao cinema, espalhados sobre a mica do calçamento, os gibis que um primo lhe dava toda semana, depois de lidos. Às vezes conseguia o dinheiro necessário para entrar, outras vezes não.

Depois veio a fase do trabalho duro, mas já aparentado com arte, como o de filetador de carrocerias de caminhão, o filete sendo um elemento decorativo importante no qual, adolescente ainda, ele se tornou mestre. E aquele ofício lírico, belíssimo, que era o de ilustrar lenços, um prenúncio do lirismo de suas telas num futuro que se estendeu até a semana passada. E também a experiência não desprezível como office boy da loja A Normalista, que vendia meias, época em que, por fora, associou-se a um vendedor de placas decorativas com luzes de neon, cabendo-lhe emprestar ao produto o máximo de colorido.

Da fase de office boy veio-lhe não só o neon (elemento central de sua pintura) mas também as mulheres cuja silhueta o neon guarnece, dando singularidade à arte de Bernardo. Essas neons não vieram do nada. De vez em quando o primo Chico, que também trabalhava n’A Normalista, recebia um pedido especial das mulheres do meretrício que havia perto do Mercado Municipal. Essas mulheres se vestiam de forma impressionante, com roupas da melhor qualidade e casacos de veludo que a maioria das senhoras de família não tinha. Chico preparava dois ou três amarrados de caixas de meias importadas e lá se ia Bernardo, no verdor de seus treze anos, rua abaixo, o coração aos pulos (a foto que ilustra esta página é dessa época). Elas o mandavam esperar na sala enquanto experimentavam as meias num dos quartos, em grande algazarra. Depois de ser compensado com uma gorjeta generosa, Bernardo retornava à loja. Só uma vez aconteceu algo: uma delas lhe despenteou o cabelo e disse: “Menino lindo de olhos verdes”. Provavelmente foi esta que inculcou nele o espectro do neonlúdio, como depois se chamou a técnica que se tornou sua marca.

O meretrício há muito desapareceu, mas não se pode dizer que a cidade tenha melhorado depois disso. Há coisa de dois meses, Bernardo foi vítima de um seqüestro-relâmpago em pleno centro. Teve de rodar quilômetros com um facínora ao lado até ser levado a um caixa de banco onde foi espoliado de dinheiro suficiente para comprar um número incalculável de entradas para a matinê do Cine República. Mas não era dinheiro o que importava agora, e sim o coração que não se estabilizou mais desde então. O susto fora grande demais para ele.

É verdade que em 1999 Bernardo teve de implantar uma safena e uma mamária, mas ele vinha bem nos últimos tempos, mesmo com a válvula mitral avariada, como se verificou há pouco. Ainda assim continuou pintando e preparando a mostra programada para outubro, em São Paulo, e que agora se fará sem ele. Mas a última obra que produziu não se destinava à mostra. Foi Terezinha, sua admirável companheira de toda uma vida, quem me comunicou que ele estava pintando uma santa, Santa Isabel de Portugal, padroeira de Uchoa, cidade onde ele passou alguns anos de sua juventude, quando era professor secundário. A santa ficou linda. O quadro talvez fosse uma homenagem ao santeiro Fermín, ou talvez um ardil para Bernardo se apegar na santa e poder contar com sua proteção. Essas coisas são inexplicáveis, mas receio que a santa, enciumada das neons, lhe tenha despenteado o cabelo e arrastado para o lado de lá.