Ano 33

Um repórter em Jerusalém



Eustáquio Gomes


Minha profissão de escriba itinerante a serviço do Império tem-me dado a oportunidade de ver coisas realmente interessantes pelo mundo, umas engraçadas, outras tristes, e ainda outras verdadeiramente trágicas. Era pouco provável que tais coisas me acontecessem se eu estivesse preso a uma ocupação qualquer em Roma ou na Trácia. Por isso agradeço diariamente ao imperador sua benignidade e tolerância para com minha modesta pessoa. Ainda assim, há experiências que desejaria não ter vivido. Não gosto de ver um escravo ser escorraçado, e vi muitos o serem. Vi hordas de prisioneiros serem degoladas depois de rendições negociadas. E em Jerusalém assisti pela primeira vez a uma crucifixão, sob os auspícios de um colega de escola que o destino fez governador da Judéia, Pôncio Pilatos, cuja casa na praia de Cesaréa eu desejava conhecer, e o fiz, regaladamente, tomando vinho durante três dias seguidos e degustando a melhor vitela da Palestina.

Vamos ao caso. No dia mesmo em que cheguei a Jerusalém e me encaminhei ao palácio do governo, encontrei Pilatos às voltas com uma turba de sacerdotes e anciãos, que me disseram ser do sinédrio local, acompanhados de um bando de funcionários públicos, todos escoltados, a curta distância, por uma dezena de soldados romanos. 

— Trouxeram um prisioneiro que dizem ter feito desordens no Templo, disse-me Pilatos servindo-me uma taça de vinho. — Já vieram aqui três vezes hoje. A cada vez o prisioneiro me parece mais machucado. Que dia você escolheu para chegar, meu amigo!

— Desordens no Templo? Que espécie de desordens?

— Dizem que derrubou mesas, destroçou mercadorias, enxotou os coletores de impostos. Mas não feriu, não matou ninguém. É só um camponês enraivecido. E eu não sou Herodes Antipas.

Dado o rumor que faziam agora no pátio, onde se concentravam os sacerdotes e os outros com o prisioneiro, Pilatos resolveu pôr um fim àquilo. Acompanhei-o até a sacada. O prisioneiro estava sendo espancado outra vez. Tinha as mãos amarradas às costas e não dizia nada, apenas girava o corpo de um lado para outro, ao sabor das pancadas e chicotadas. Pilatos ordenou que parassem e começou a negociar com os sacerdotes. Lembrou a eles seu costume de soltar um prisioneiro por ocasião da Páscoa.

— Não me parece que esse homem tenha feito nada de tão grave. Sugiro soltá-lo.

Os sacerdotes e os anciãos, exaltados, só faltaram escalar a sacada. Aos gritos começaram a enumerar inúmeras acusações contra o prisioneiro, das quais a menos grave era ter promovido desordens no Templo. Pilatos fingiu surpresa:

— Que mais ele fez?

— Blasfema, simula fazer milagres e conspira contra o Império. Por que acha que ele se diz "o rei dos judeus"?
Pilatos voltou-se para o prisioneiro e perguntou-lhe, um pouco à brincadeira, se ele era mesmo o rei dos judeus. O prisioneiro meneou positivamente a cabeça e respondeu com voz surpreendentemente firme:

— Você é quem diz. 

— Esses senhores o acusam de pregar a rebelião e a libertação de Israel. Isso é verdade?
 O prisioneiro respondeu que pregava a liberdade da alma. 

— Mentira, disse um sacerdote. — Ele mistifica para enganar. Muitos aqui o ouviram dizer: "Eu vim trazer a espada". Além disso ameaçou destruir o Templo e disse que o reconstruiria em três dias sem o auxílio de qualquer homem. Atravessou a cidade montado num burro, com as pessoas erguendo ramos em sua honra e gritando o seu nome. Se não dá um fim nisso agora, governador, amanhã pode ser tarde.

Pilatos desceu as escadas e aproximou-se do prisioneiro:
 

— É verdade que faz milagres? perguntou.

Não houve resposta. 

— Mas isso é desapontador, disse Pilatos. — Quer dizer que é só outro pregador judeu? Assim acaba por dar razão a estes senhores respeitáveis.

Os sacerdotes, irados, voltaram a proferir injúrias contra o prisioneiro. 

— Não responde nada? perguntou mais uma vez Pilatos.  — Olhe que lhe fazem acusações graves. 

Como o prisioneiro mantivesse a cabeça baixa e fizesse silêncio, Pilatos tornou a entrar, deixando no pátio os doutores a discutirem entre si. Acompanhei-o a seus aposentos e nos pusemos a beber vinho e a conversar sobre coisas amenas. Falou da família, das casas que havia comprado e dos sábados agradáveis que passava na casa de Cesaréa. A casa de Cesaréa agradava-lhe mais, porque dava para o mar. Disse que tinha reservado para mim, nela, o melhor quarto. Estávamos nisso quando recomeçou lá embaixo a sessão de espancamento. Eu disse a Pilatos:

— Vão matá-lo aqui mesmo.

— Não, disse Pilatos. — O que querem é autorização para o crucificar. 

— Crucificar! Mas afinal, quem é esse homem?

— Um tal Jesus de Nazaré. Dizem que cura cegos, expulsa demônios e até ressuscita mortos. Boatos, claro. Se eu fosse mandar crucificar todos os milagreiros desta terra, não sobrava ninguém para servir na coletoria. 

— Mas por que eles se voltam justamente contra esse?

— Quer mesmo saber? Ciúmes. O homem anda arrastando multidões. Esses senhores não arrastam nem às próprias famílias. 

Entrou um funcionário para dizer que os sacerdotes estavam inquietos e exigiam que Pilatos lhes concedesse uma nova audiência. O governador fez um gesto de irritação e disse que esperassem. Mas em seguida levantou-se e foi novamente à sacada. A multidão tinha aumentado no pátio. Desta vez Pilatos foi direto à questão:

— Está bem. Que querem que faça com ele?

— Crucifica! Crucifica!

"Está vendo?", disse-me Pilatos em voz baixa. E depois, como se lavasse as mãos com uma água invisível e um jarro inexistente:

— Pois façam o que bem entenderem. Eu sou inocente do sangue desse homem.

E tornou a entrar. Como eu tivesse algumas providências a tomar na cidade (combinamos nos encontrar mais tarde, no palácio), saí. Não fui muito longe: aqueles senhores furibundos estavam fazendo o diabo com o camponês nazareno. O pátio parecia um circo macabro. Primeiro o vestiram com uma túnica púrpura, para torná-lo ridículo. Depois o coroaram com uns ramos de espinho que colheram por ali mesmo, nos jardins do palácio, e passaram a fazer grandes saudações e curvaturas diante dele, dizendo: "Salve, rei dos judeus". 

Em seguida, cansados disso, tiraram-lhe a túnica púrpura e lhe devolveram a  roupa rasgada e ensangüentada que ele vestia antes, para que a pusesse de novo. O prisioneiro foi levado para fora. Estava bastante maltratado e as feridas provocadas pelos espinhos sangravam muito, mas parte do sangue já havia secado nas bordas e de algum modo estancava o fluxo do sangue novo. Já não parecia ter qualquer interesse em reagir, se é que alguma vez o teve. 

Lá fora estava pronta uma cruz, que haviam mandado fazer num marceneiro especializado em cruzes de madeira. O soldados e os sacerdotes, não querendo forçá-lo a carregar a cruz por tão grande distância, porque poderia morrer no caminho, pararam um homem qua passava na rua e o fizeram identificar-se. O homem, bastante assustado, disse que se chamava Simão, que tinha mulher e filhos, que vinha do campo e para o campo voltaria, tão logo fosse possível.

— Pois, Simão, faça-nos um favor — disse um soldado. 

— Ajude este malfeitor a carregar a cruz até o Gólgota.

Os judeus davam um segundo nome ao Gólgota — o "lugar da caveira"— porque era ali que se faziam as crucifixões de assassinos, ladrões reincidentes e contestadores do Império. Não vou descrever a penosa caminhada até o monte, passando por aquelas ruas estreitas que vez por outra são atravessadas por bandos de ovelhas sujas, seguidas por pastores de cajados rústicos que batem as sandálias sobre a terra seca, poeirenta, de onde as casas emergem diretamente como se fossem uma extensão do próprio chão arenoso. Pela porta entreaberta de uma vivenda observei um homem que dormia sobre uma tarimba. A turba ululava atrás de nós.

Depois, o sol forte igualava tudo. Lembro-me com clareza apenas do momento em que depuseram a cruz ao pé do monte. Ao longo da encosta vi várias cruzes afixadas, testemunhas de sacrifícios passados, seus cadáveres já há muito apodrecidos debaixo da terra. Pedras e calhaus por toda parte e, no horizonte, à distância, o vale e o deserto. Um dos soldados aproximou-se do nazareno com uma taça que me disseram conter vinho e mirra, uma mistura atroz, que nem um árabe aceitaria. De fato, o prisioneiro recusou a bebida, o que de certa maneira surpreendeu a todos, pois ele devia ter muita sede. 

Então começou o processo de crucifixão. Notei que a cruz judaica é feita mediante um sistema de cravelhas que permite que os braços sejam afixados ao madeiro central de maneira perfeita, dando ao conjunto a forma de um T. O arremate de uma tabuinha pouco acima da junção serve de apoio à cabeça. Se a condenação é por sedição, a tabuinha recebe a seguinte inscrição em latim: Seditio. No caso desse condenado, quiseram glosar o mote da acusação principal mandando inscrever as iniciais de uma titulação pilhérica: INRI, ou seja, "Jesus Nazareno Rei dos Judeus". 

Primeiro lhe amarraram os braços na altura dos pulsos, depois, pelos calcanhares, os pés. Um cavaco de madeira plana, com um furo no centro, foi-lhe colocado sobre cada mão espalmada. O furo permitia a justa passagem de um prego. Um soldado aproximou-se com quatro pregos e quatro martelos, que foram distribuídos entre quatro funcionários. Os martelos começaram a trabalhar simultaneamente. Os pregos eram compridos e finos, mas sólidos, medindo a altura de um dedo médio. O condenado, ao ser transfixado, torcia-se de dor e lançava gritos lancinantes. Algumas mulheres que haviam acompanhado o cortejo puseram-se a chorar, sendo repreendidas pelos sacerdotes e pelos funcionários, que, a meia distância, continuavam a soltar imprecações contra o crucificado, como  para não deixar que a comoção tomasse conta de toda a turba. Uma mulher escondia o rosto num xale, para não ver a cena, e chorava mais que as outras. Alguém disse: "É a mãe dele". 

Quando terminaram de martelar e suspenderam a cruz, o condenado como que perdeu o fôlego e calou-se. Só fazia abrir a boca, como se pedisse água. O sangue lhe escorria em abundância. Vez por outra soltava algum gemido, meneando a cabeça para os lados, mas tão fracamente que era como se já não esperasse mais nada da vida. 

As coisas pareciam ir-se acomodando quando viu-se um movimento de pessoas subindo apressadamente o morro. Uns soldados traziam dois outros condenados que também carregavam grandes cruzes às costas. Dois ladrões, foi a notícia que correu. Logo começou a dar-se o mesmo com eles: pregos, martelos, gritos, imprecações. Foram erguidas as cruzes, uma de cada lado do nazareno. Este já parecia completamente mudo e ausente, embora ainda respirasse e por vezes mexesse a cabeça. Alguém da turba, achando talvez a composição esplêndida e o trabalho bem feito, gritou para ele:

— Não falou que derrubava o Templo e o reconstruía em três dias? E então? Por que ao menos não desce daí?

Um escriba comentou cheio de sarcasmo:

— Dizia salvar os outros e não pode salvar nem a si mesmo. Que piada!

— Desça da cruz, vamos!

— Se for capaz disso nós acreditaremos você, ah, ah!

Um dos ladrões, que julgava estar ali apenas para fazer companhia àquele camponês que se dizia rei, culpou-o disso. Houve então um momento (já era noite) em que o nazareno, tendo dado um grito que parecia uma espécie de clamor ou oração, inteiriçou-se e pediu piedade aos céus. Um soldado embebeu uma esponja em vinagre, espetou-a na ponta de uma vara e chegou-a à boca do condenado. O nazareno inteiriçou-se e abriu muito os olhos, não porque o vinagre fizesse qualquer diferença para ele àquela altura, mas porque sua capacidade de resistência estava chegando ao fim. Murmurou em seguida umas palavras incompreensíveis e deixou pender a cabeça. Estava morto.