Entre Bukowski e John Fante



Eustáquio Gomes




Ao volume de contos O Homem Devolvido, de Marcelo Mirosola, se poderia aplicar uma frase de Rubem Fonseca na apresentação do primeiro livro de Flávio Moreira da Costa, O Desastronauta, de 1971: "Um texto sobre a alienação do homem numa sociedade em transição". Talvez seja uma frase vazia, já que o homem nunca termina de estabilizar-se e a literatura tratou sempre de refletir essa eterna crise. A propósito de Mirisola, faz certamente mais sentido lembrar o subtítulo da novela de Moreira da Costa, tão revelador quanto programático: "Ok, Jack Kerouac, nós estamos te esperando em Copacabana".

Mirosola poderia ter adotado epígrafe semelhante, dirigida não exatamente a Kerouac mas a Bukowski e John Fante, autores que herdaram a falta de etiqueta de um animal literário postado alguns degraus acima, Henry Miller, que por sua vez recebeu o bastão de gigantes como Knut Hamsun (o de Fome) e o Gorki das andanças. Esse fecundo veio fez escola no mundo inteiro, zombando do beletrismo e mesmo da vanguarda arrumadinha. Em oposição aos fluxos de consciência na linha proustiana, os jorros confessionais e a liberdade verbal e escatológica. Entre nós, eu lembraria sobretudo Reinaldo Moraes, autor de duas novelas onde a deambulação se casa com um hábil uso da linguagem coloquial que parece ter o fim explícito de fazer a literatura escarnecer de si mesma (Tanto Faz e Abacaxi) e de tornar o beletrismo impossível.

Os beats, como se sabe, tiveram a aprovação de Miller, para desconsolo de Lawrence Durrel, que achava tudo aquilo um lixo. E aqui é bom chamar a atenção para um fenômeno novo: os fluxos verbais tornaram-se o lixo do nosso tempo. Cada minuto, cada segundo toneladas de textos são processadas e volatilizadas via Internet entupindo todos os canais com um vozerio sem precedentes no mundo da palavra escrita. É uma grande cacofonia que certamente exigirá da ficção não a sua mimese, mas o seu contrário. Contra a prolixidade, a síntese. Contra o rumor, o silêncio. 

Os fluxos de Mirisola certamente têm suas sobras, apesar de seus contos serem em geral curtos. Mas ele se afasta do burburinho geral ao inventar, se não uma nova sintaxe, uma linguagem de desconexão verbal que afeta a semântica e o livra do meramente pop. Mesmo quando seu texto parece uma simples enunciação de experiências díspares, há um centro buscando a totalidade da ação, uma força tentando alcançar a harmonia na desarmonia. O baixo registro é aparente, a vulgaridade trai-se nas referências cultas e sua maneira errática de contar, com interrupções, interpolações e desvios é na verdade uma reivenção, à sua maneira, do velho conto tchecoviano e mesmo do moderno conto daltoniano.

Sua ironia dos arquétipos anda de par com a ojeriza à intelectualidade enfatuada, o que corresponde à recusa de um determinado tipo de escrita. Em meio aos torneios escatológicos (que aliás o distancia de todo erotismo), isso fica às vezes bastante explícito. Quando menciona, por exemplo, um "autor à antiga" cujos personagens "vestiam suéteres" enquanto "o vento soprava de encontro às janelas" de onde se avistavam "os telhados vermelhos e as casas brancas alinhadas na planície", o narrador lamenta que tais cenários nunca lhe aconteçam e ele tenha que contar com a paisagem da "boate e churrascaria Gauchão". Quer isso dizer que ele dispensa não só as "paisagens de estimação" mas também aquele tipo de linguagem dourada tão típica da literatura feita para fazer sorrir a sociedade, como queria Afrânio Peixoto, coisa que está longe de haver desaparecido. 

O que resulta é uma narrativa dura, sincopada e às vezes impiedosa não apenas com os personagens mas também com o leitor. Nenhuma concessão ao romantismo e à delicadeza. É uma literatura de vômitos, arrotos, borborigmos, mau-hálito e esperma. Esse esforço de dessacralização chega a ser rebarbativo a ponto de cansar e perder a força. Faz João Silvério Trevisan parecer um lírico e Domingos Pellegrini um clássico, para ficarmos no âmbito dos autores da geração imediatamente precedente. O que, ao cabo, confere a Mirisola uma arrogância parecida com a de Paulo Francis quando chamava todo mundo de "jeca". E, convenhamos, há "jecas" melhores do que Francis.

Quando finge cultuar uma iconografia que é bem o espelho do que renega ("Saudades do Bolinha. Saudades do Airton Rodrigues. (...) Por que a Hebe Camargo ainda não morreu?") Mirisola é deliciosamente cômico mas perigosamente efêmero. Aproxima-se da crônica ou mesmo da banalidade (que quer dizer, por exemplo, a expressão "um amorzinho-erasmo-dias"?) ou do simples prosaísmo como quando, ao repelir a literatura do tipo Jorge Amado ("as facilidades e a acomodação do autor de Tieta do Agreste"), confessa preferir o cronista Zé Sarney e arremata: "E a Roseane é uma gata!". Poderíamos passar sem essa.

Duradouro e penetrante é quando ele se mostra na contramão de tudo aquilo que tende a organizar a vida mediante fetiches: florais, origami, xacras, xamãs, mantras, ioga e incensos ("Hildegard"). Naturalmente é também contra o Bagavad-Gita. Transposto para o plano da linguagem, quer isso dizer que ele recusa o fetiche da linguagem bem posta, das frases arrumadas e da sintaxe ordenada. Do cânone, enfim, ainda que haja também o cânone de Bukowski e Fante. Mas é o que faz dele um escritor e, pode-se esperar, não dos menores.
 

(Publicada em O Estado de S. Paulo)