|
Bernardo, uma introdução
BERNARDO CARO não viveu o
suficiente para assistir à celebração que se fez em
torno dele, no início de outubro de 2007, quando se inaugurou no
Instituto Cervantes, em São Paulo, talvez a mais importante retrospectiva
de sua obra. Ele morrera duas semanas antes, num hospital de Campinas,
durante o pós-operatório de uma cirurgia para o implante
de uma válvula cardíaca. A propósito dessa mostra,
a agência de notícias EFE distribuiu para o mundo hispânico
uma notícia em que chamava-o de “o mais espanhol dos pintores brasileiros”.
Na semana de sua hospitalização,
Bernardo Caro se pôs a rabiscar uns esboços de memórias
que depois enviava a mim por um portador, em folhas soltas, dentro de uns
envelopes amarelos. Escrevia à mão e a lápis. Escrevia
sobretudo sobre a infância, como se desejasse voltar a ela ou, nela,
reencontrar a saúde perdida. Seu propósito era quem sabe
enriquecer o livro de arte que então se preparava para ele – precisamente,
este – e que ele também não veria.
Havia, por exemplo, um comovente
relato de quando tinha nove anos de idade. Ele sonhava possuir um blusão
de aviador que era moda entre os jovens da época, pois era o tipo
de blusão que os pilotos americanos usavam em 1940, o segundo ano
da II Guerra Mundial. Fermín, o pai, que naqueles tempos foi sucessivamente
carvoeiro, verdureiro, santeiro, garapeiro e comerciante de ferro-velho,
não podia prover tais luxos. Josefa, a mãe, sentindo a frustração
e a tristeza do menino, fabricou para ele um blusão à base
de sacos de açúcar, branqueando-os e costurando-os. E lá
se foi Bernardo, orgulhoso de seu blusão, ao encontro dos colegas.
Não se sabe que impressão teria causado. O manuscrito nada
diz a respeito.
Havia outras recordações
de infância, a maioria da quais ilustrando a pobreza em que viviam
na época, numa Campinas ainda provinciana e calma. Em outras ele
buscava aprofundar episódios já esboçados na entrevista
biográfica publicada em 1994, sob o título de Um andaluz
nos trópicos, e replicada neste volume. Numa delas, lembrava que
seu pai também não podia comprar brinquedos para os filhos,
nem mesmo no Natal. Bernardo então os fabricava com as sobras dos
caixotes de madeira que Fermín usava para acondicionar as verduras
que vendia. Entre aviões, automóveis e outras miniaturas
que ele produzia e vendia aos colegas e familiares, sobressaíam-se
os cavalinhos.
Pela primeira vez, num Natal, tive
a alegria de ganhar de uma tia um cavalinho de pau que, infelizmente, tomou
chuva e se desfez. Com a melhora da situação financeira em
casa, ganhei de meus pais um Popeye que podia ser movimentado por um cordel.
Acionado, o brinquedo colhia um balde que continha espinafre.
Bernardo revela então que
foi esse brinquedo que, décadas mais tarde, veio a inspirar o seu
Mulher Totêmica. Nessas notas soltas, ele insiste na alusão
a um outro episódio já mencionado na entrevista de 1994,
realçando o significado que também viria a ter em sua obra:
o dia em que, como office boy da já extinta loja A Normalista, foi
mandado a uma casa de mulheres para fazer a entrega de um amarrado de meias
finas.
Essas mulheres se vestiam de forma
impressionante, com roupas da melhor qualidade e casacos de veludo que
a maioria das senhoras de família não tinha. Meu primo Chico
preparou dois ou três amarrados de caixas de meias importadas e lá
fui eu, no verdor de seus treze anos, rua abaixo, o coração
aos pulos. Elas me mandaram esperar na sala enquanto experimentavam as
meias num dos quartos, numa algazarra juvenil. Depois de ser compensado
com uma gorjeta generosa, voltei à loja. Só uma vez aconteceu
algo: uma delas me despenteou o cabelo e disse: “Menino lindo de olhos
verdes”.
Essas damas estão na origem
das “mulheres de néon” que a partir de 1986 marcam presença
em praticamente toda a sua obra, fazendo-a reconhecível em qualquer
contexto onde se encontrem, ao lado dos tacos e das bolas de bilhar, signos
de ludismo e de um erotismo evidente. Esses símbolos convivem com
outros que também emanaram da infância ou da adolescência,
como os cartazes religiosos que passou a produzir para as confradías
de Málaga, Archidona e Villanueva del Trabuco, o pueblo de onde
vieram seus pais, visando às festas da Semana Santa. A última
obra a ocupá-lo foi, aliás, o retrato de uma santa – Santa
Isabel de Portugal –, padroeira de Uchoa, cidade paulista onde Bernardo
vivera alguns anos de sua juventude como professor secundário. Pode-se
apostar à larga que as raízes da arte sacra de Bernardo se
encontram igualmente no território de sua infância, quando
se encantava com as estampas religiosas que o pai vendida pelas fazendas
próximas de Campinas.
Místico, é possível
que tenha se agarrado ao retrato da santa para obter dela salvaguardas
para a cirurgia iminente, que se sabia arriscada. Terminou a obra no feriado
de 7 de Setembro, a uma semana da hospitalização. Dois meses
antes, um fato havia possivelmente agravado o descompasso cardíaco
com o qual convivia, intermitentemente, desde 1999, quando foi submetido
a uma primeira cirurgia para o implante de uma safena e de uma mamária:
Bernardo fora vítima de um seqüestro-relâmpago em pleno
centro de Campinas, episódio que o abateu e consternou. Desse dia
em diante, e antes do desfecho final, freqüentou por duas vezes a
sala de UTI, experimentando um sofrimento físico e moral que, entretanto,
não foi suficiente para afastá-lo dos pincéis.
Sua morte, em 16 de setembro de
2007, jogou uma luz mais intensa sobre seu trabalho e deu-lhe um sentido
de unidade que antes não se notava tão facilmente. Da primeira
à última obra, tudo nele parecia conectar-se aos primeiros
anos, descrevendo uma elipse em torno de si mesmo como se juntasse as pontas
de um arco voltaico. A opera omnia de Bernardo demonstrava assim plena
congruência com a vida e revelava-se, ela mesma, uma obra de arte.
E pensei comigo: não pode desaparecer como tantos, alijado pelas
regras filistinas da circulação e do mercado. Este livro
é um esforço no sentido de que isso não aconteça.
|
|