O Bibliomaníaco
Tomado de repentina animação,
consagro o sábado à arrumação das prateleiras.
Descubro que o porão é mais espaçoso que o pequeno
aposento que ocupava antes, e que agora é habitado por Vovô.
Antes os livros ameaçavam sair porta afora, a tal ponto de ser preciso
arranjá-los em fila dupla. Não havia estantes para todos.
O resultado é que os livros colocados atrás há muito
não viam a luz do dia; e os da frente se ressentiam dos companheiros
resfolegando em sua nuca. Retirar aqueles de onde estavam significava remover
a fila da frente, operação não muito diferente de
um ato de demolição. Para não ter de fazê-lo
eu passava meses sem ver a turma da retaguarda; e os da vanguarda já
iam me cansando.
Agora, com um pouco mais de espaço,
reencontrar a turma dos sem-prateleira e devolver a eles a alegria da berlinda
equivale a uma reforma agrária das letras. Esses amotinados sabem
invadir um lar e depois não querem mais sair; que fiquem. Mas, sem
um método e uma organização, não se prestam
a muita coisa.
Arrumá-los pelo gênero?
É o tipo do arranjo clássico: romance, conto, ensaio, poesia,
filosofia, biografia, memórias, diários, cartas etc. Por
esse esquema há também que ordená-los segundo o autor
e, havendo paciência, conforme a literatura a que pertencem. Mas
isso já não parece satisfazer meu atual estado de espírito
nem meu desejo de organização. Nossa relação
com os livros se modifica com o tempo. Pensemos então numa forma
diferente de classificá-los, algo mais próximo dos sentimentos
que temos em relação a eles.
Qualquer coisa assim:
1) Livros que precisam ser relidos
de vez em quando, no todo ou em parte, para a gente voltar a sentir que
ainda é capaz dos grandes sentimentos de antes.
2) Romances que nos marcaram a adolescência
e que agora, relidos, se recusam a mostrar o mesmo encanto.
3) Clássicos que todo mundo
diz ter lido e que nos derrotaram entre as páginas 50 e 84, deixando
em nós uma sensação de incompetência e de falta
de sintonia com a opinião universal, isto é, com o cânone.
4) Livros que separamos para ler
nas férias e que jamais foram tocados pra valer.
5) Livros que compramos impelidos
pelo desejo de adquirir cultura ou mesmo erudição mas que
logo nos repeliram e desconfio que para sempre.
6) Livros que simulamos ter lido
e dos quais até citamos uma frase ou outra (não necessariamente
recolhida deles, mas de seletas de citações) e que agora
nos encaram como se fôssemos estelionatários.
7) Livros que nos interessam pouco
ou nada mas que conservamos conosco na esperança (ou no temor?)
de que venhamos a precisar deles mais tarde, ou quem sabe venhamos a mudar
de gosto ou de temperamento.
8) Livros adquiridos em sessões
de lançamento, com autógrafo garranchoso, e que agora nos
pesam porque a cada dia que passa somos obrigados a fugir do autor para
não ter de justificar nosso silêncio.
9) Livros que certamente leríamos
com prazer se tivéssemos várias vidas pela frente.
10) Livros de coleção
que corríamos a comprar sempre que um novo número aparecia
mas que agora, perfilados na estante, com suas lombadas da mesma cor, têm
o hábito de acusar nossa tendência à compulsão.
11) Cartapácios enaltecidos
pela crítica mas cujo sentido e utilidade nos escapam, e que, emboscados
nas estantes, não cessam de disparar contra nós seu dardo
de funesta hostilidade.
12) Livros que na vitrine da livraria
nos pareciam do maior interesse mas que, a caminho de casa, sob a crua
luz da realidade, sofrem uma súbita mutação e escarnecem
de nosso terrível engano.
13) Livros que nós próprios
escrevemos, movidos por alguma obscura intenção, e que agora
nos olham como se não nos reconhecessem ou tivessem sido escritos
por outro, produtos talvez do sonho de algum autor com cara de fuinha cuja
existência nem mesmo é um fato absolutamente certo.
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