O Mágico Rio de Rosa

Eustáquio Gomes

 I           

Furtando uma imagem a Julio Cortázar e supondo que João Guimarães Rosa escreva como um pugilista jabeia (sim, porque de algum modo ele ainda continua a escrever), eu diria que em Grande Sertão: Veredas sua vitória ocorre por pontos e em A Terceira Margem do Rio, por nocaute.

Tal é a natureza da narrativa breve e tal é o impacto desse conto grave, solene e definitivo, tido por uns como ligeiramente exótico, por outros como das mais belas e perfeitas estórias curtas de que se tem notícia.

E, assim como o boxe tem sua mitologia própria, da qual se alimenta e com a qual ultrapassa o sentido de mera briga de braço, o conto roseano opera com uma série de signos (jabs verbais) que o potencializam o o projetam muito além dos limites de seu enredo. E trabalhando ao largo, em profundidade e verticalmente, lhe bastam meia dúzia de páginas para, com mínimos meios e um máximo de tensão, alcançar como que o funcionamento de um sistema harmonioso. 

Mas de que forma e por que meios, caramba, esse conto funciona tão bem? Que leis regem sua dinâmica exata e de onde provém esse halo de magia e mistério que o remete, já nas primeiras linhas, aos domínios do mito e da poesia?

Primeiro, há um rio - "grande, fundo, calado" - cuja importância na estória só pode ser comparada à da espinha dorsal no arcabouço de um homem. Depois, há esse homem, pai exemplar, "cumpridor, ordeiro, positivo", mas que, calado e misterioso como o rio, constrói para si uma canoa e nela embarca; e - eis o insólito - embora tenha embarcado para sempre, tampouco vai a lugar algum:'permanece vagando no ermo do rio, de enchente a vazante, sem voltar a pisar a margem. E por último há o narrador, o filho dileto que, esbarrando na falta de explicação lógica para tão singular auto-exílio, intromete-se com sua vaga culpa entre os fatos e o leitor. O que se lê, portanto, é um reflexo dessa culpa e, tendo os fatos já envelhecido mas não diminuído o seu poder de evocação, a própria narrativa funciona aqui, para o narrador, como confissão e catarse.