Capítulo inédito de Os Mandarins

                  Próximo livro de Eustáquio Gomes  

          
           Fevereiro de 1981.

         Atracado no porto de Santos, o transatlântico Navarino, de bandeira grega, preparava-se para fazer sua última viagem a serviço da Karageorgis Shipping, um sossegado cruzeiro até a paradisíaca ilha de Fernando de Noronha, na costa nordeste do Brasil.  Ninguém poderia prever que, poucas semanas depois, o Navarino seria quase destruído por um incêndio que irrompeu em sua casa de máquinas. Vendido a outra companhia, foi reformado e transformado em navio de carga. Nem assim livrou-se de bater contra um cais flutuante e danificar-se seriamente. Em julho de 2001, rebatizado de Sea, foi vendido como sucata mas não chegou a completar a viagem de entrega: naufragou na costa sul-africana com 60 toneladas de gasolina.

        Se possuísse o poder da antevisão, Zeferino Vaz certamente teria evitado comprar aquelas duas passagens para Fernando de Noronha — uma para sua secretária Arlinda e outra para si próprio. Seja como for, nenhum dos dois embarcou. Uma semana antes da viagem, o comandante do navio confidenciou a Zeferino sua preocupação com as condições de desembarque na ilha. O ex-reitor ofereceu-se para ajudar. No dia seguinte, por volta da uma da tarde, em seu escritório no campus da Unicamp em Campinas, ele conseguiu entrar em contato com o administrador da ilha e obteve a garantia de que algumas lanchas seriam colocadas à disposição dos passageiros. Ao depor o telefone preto no gancho, sentiu uma onda de calor e ardência no peito. Estava tendo um aneurisma na aorta abdominal. 

         Arlinda Rocha Camargo, funcionária que o acompanhava havia mais de 20 anos, entrou na sala justamente no instante em que o chefe, pálido, deixava cair os braços ao largo da poltrona. Gritou por socorro. No andar de cima, onde funcionava o gabinete do reitor, houve um rebuliço. O almoço foi interrompido e todos se levantaram. Zeferino passando mal era como o colapso, em Roma, do próprio Papa. Plínio, o reitor, estava viajando mas seu filho Bento, que também fazia de secretário particular, desceu correndo a escada em curva da Reitoria. Encontrou Zeferino estendido no tapete, ofegante. Telefonou para o hospital da universidade, um prédio em esqueleto onde só funcionava, por enquanto, o pronto-socorro. Ouviu que a última ambulância disponível tinha acabado de deixar o pátio: o motorista costumava almoçar em casa. Bento meteu-se num Fiat 147 da universidade e interceptou a ambulância no balão de entrada do campus. O motorista fez meia volta e chegou a tempo de ver Zeferino tentar recompor-se, mas não a ponto de ficar de pé. Baixou a maca e ajudou a transportá-lo para o interior da ambulância. Era leve: 60 quilos proporcionais a seus parcos 158 centímetros de altura. Naquela penosa circunstância, encolhido na maca, parecia ainda menor. 

         A ambulância contornou o edifício da Reitoria, margeou a fachada baixa da Administração e deixou para trás os prédios dos dez institutos e faculdades ocultos pelos flamboyants, cenário que ele havia montado, peça por peça, nos doze anos em que fora reitor da Unicamp. Agora, sem que soubesse, deixava-o para sempre. Deitado na maca, de olhos fechados mas lúcido, Zeferino tentou tranqüilizar a secretária, que no último instante saltara para a ambulância. 

        — Não perca tempo comigo. Isto não é nada. Chegando ao hospital, trate de voltar e cuidar do seu serviço. 

        Na porta do hospital, já eram esperados pelo diretor da Faculdade de Ciências Médicas, o ginecologista José Aristodemo Pinotti. Avisado por Bento, Pinotti colocara em alerta o cirurgião cardiovascular Renato Terzi, ex-aluno de Zeferino, que nesse dia chefiava a emergência da casa. Meia dúzia de médicos se reuniram em torno do paciente. Enquanto discutiam os procedimentos a tomar, Zeferino, acostumado a dar ordens, pôs em marcha o seu humor cáustico:

         — Decidam logo. Não quero ter um cadáver no colo.

       Os exames confirmaram a suspeita. O aneurisma, quando não causa a morte imediata, pode levar à perda dos sentidos e, em seguida, a uma sensação de uma falsa recuperação graças ao tamponamento da ruptura pela pressão interna da aorta. Se a intervenção cirúrgica não for imediata, os órgãos vitais tendem a entrar em colapso. Era o que Terzi explicava a um Zeferino hipotenso enquanto o conduzia ao centro cirúrgico. A cirurgia durou duas horas e correu bem. Presentes, além de Terzi, o cirurgião cardíaco Valentim Baccarin, um médico-residente, o anestesista e a instrumentadora. O aneurisma foi aberto e a aorta rompida recebeu um enxerto. 

        Na UTI, Zeferino passou bem a noite mas logo de manhã apresentou sinais de insuficiência respiratória. A gasometria indicou que os pulmões não estavam oxigenando satisfatoriamente o sangue e o paciente foi colocado no respirador mecânico. Mesmo assim, pelo vidro, acenou para a filha Marly e fez um sinal positivo para dona Yoanna, a esposa. Os outros dois filhos, Sérgio e Fernando, já tinham sido avisados e estavam voltando de férias. 

        No segundo dia, porém, os rins pararam de funcionar e a família concordou em transferi-lo para São Paulo. Os Vaz residiam lá e era bom estar perto de casa. Em Campinas o paciente teria de ser deslocado a outros hospitais para fazer hemodiálise  — o Irmãos Penteado não contava com esse serviço — o que seria uma grande complicação. Pelo telefone, Terzi entendeu-se com o Dr. Ruy Sevado Bevilacqua, médico do Hospital Sírio-Libanês e da Universidade de São Paulo, um dos pioneiros da medicina intensivista no país. Bevilacqua aceitou assumir o caso.

         Mas o que se passou na capital foi uma escalada dos problemas começados em Campinas. Além do déficit respiratório e do colapso dos rins, Zeferino apresentou insuficiência cardiovascular e uma gotejante hemorragia que se estendeu do local do aneurisma a toda a cavidade abdominal. Rapidamente se caracterizava um quadro de falência de múltiplos órgãos — no caso, quatro — em que as chances de sobrevivência diminuíam a cada hora. Se a cirurgia houvesse sido feita antes da ruptura, isto é, preventivamente, o risco de vida seria de apenas 5%. Mas Zeferino, mesmo sendo médico (ainda que veterinário), nunca ia a médicos. Nos últimos anos tornara-se um esclerótico e não sabia disso. Confiava na sua meia hora de ginástica diária e no quilômetro e meio que fazia, antes e depois do jantar, entre as aléias do campus. Mantinha a crença de que movimentar os dedos das mãos ativava a circulação sangüínea. ¨Sou biólogo e sei que a inércia física leva à degeneração orgânica¨, dizia. E lembrava com orgulho seus tempos de velocista do Clube Atlético Paulistano, tanto nos 100 quanto nos 200 metros rasos, sem falar no revezamento de 4x100 e 4x200, como se esses feitos o tivessem imunizado das doenças e também, por certo, da morte.

         Morreu às quatro da tarde do dia 9 de fevereiro de 1981, sete dias depois de ter falado com a ilha paradisíaca. Completaria 73 anos em maio.