Eustáquio lança
seu
“Cavalo Inundado”
Roberto Goto
Há cerca de dois anos, um
jovem escrevia para a coluna de leitores do “correio” alguns poemas heréticos
e anticonvencionais falando de cães meditabundos que percorriam
as ruas da cidade propondo e penetrando os profundos enigmas da existência,
questionando sobre a condição humana (ou canina?).
Eram poesias na linha subjetivista-literária de um James Joyce
na trilha personalista-fragmentária de um Fernando Pessoa.
Do primeiro, havia o estilo, a sensibilidade de captar impalpáveis
significações da trivialidade cotidiana. Do último,
o misticismo e a angústia surda diante do universo repleto de símbolos
e incertezas.
Ex-repórter deste jornal,
recém-formado em jornalismo pela PUCC, porém mais poeta
que jornalista, Eustáquio Teixeira Gomes estréia agora com
um pequeno volume de vinte e dois poemas concebidos e urdidos dentro
dessas perspectivas joycianas, pessoanas e, eventualmente, cortazianas.
A obra, editada à margem
do mercado comercial, em tiragem de apenas trezentos exemplares,
reúne as reflexões místico-metafísicas de um
cavalo que é ao mesmo tempo filósofo, poeta e profeta.
As preocupações com
o ambiente físico são mínimas ou ausentes. Se há
referências a campos, fazendas e flores (palavras que tomam sempre
sentido diverso do usual), é apenas para sugerir a postura reflexiva
do pensador eqüino, não para situá-lo geograficamente.
O mundo resume-se somente nisto: pensamentos introspectivos , interrogações,
perplexidade, dúvida e indefinidos momentos de consciência-sub-consciência.
Trata-se, por isso mesmo, de um
cavalo inundado, ou seja: mar interior de conjecturas, suposições,
meta-idéias, incerteza e desesperanças. Uma eqüina consciência
que transborda de perguntas sobre suas origens e o seu futuro, sobre o
significado subliminar e sub-reptício das coisas e dos seres, ocupada
na busca de algo que não sabe o que é. E toda exploração,
executada em surdina, sem desespero ou angústia explícita,
para inacabá-la em caos silencioso, como pacífico oceano
em que se juntam as ondas de todas as teorias que tentam abarcar o passado
e o destino do mundo.
Em “Terceiro Convite ao Vôo”,
filosófico, o eqüino rumina questões sobre o sentido
da humanidade, ou melhor, origens e seu futuro, sobre o da eqüinidade.
Encontrar o sentido é: “Perseguirmos a nossa antiga sombra / no
território amorfo onde a perdemos / ou sugerir caminhos pelos ramos
/ futuros da incerteza que habitamos?”. E, intuitivo, acaba apontando (não
sem insegurança) a via terceira da existência, a proposta
de abandono, as correntes do acaso: “... ou três asas inventamos
/ com que afiarmos no escuro, docemente?”.
E afinal o que é existir?
Ser alguém todo tempo ou ser alguém agora e outro alguém
logo após? Ainda é o filósofo quem diz: “Não
guardo os olhos da hora vencida / e isso me insatisfaz como um caso de
morte. / Impossibilidade de reter o / eu de há alguns minutos. /
E a rua já é outra. Seu idioma. / Outra a fração
da manhã / Pois tudo é interrompimento / ainda que não
o morto diário / ou o jantar / mas o que se é durante fluindo.
/ Ou cada impulso faz uma vida em separado? / Ou sou vinte, mil, dez mil
/ dentro de um minuto inconsútil”.
Incertamente, a concepção
heraclitiana está também em “Nônupla”, onde o metafísico
cavalo pergunta se o ser é uno ou múltiplo, se há
unidade na multiplicidade ou multiplicidade na unidade: “O múltiplo
desfaz-se e faz-se / a todo instante. Face hoje / rompida, recomposta face
/ na eternidade seguinte. E / vário o ser e o não ser / misturadamente
ou: cios / de mulher mal definida: / brasa, bruma? Brejo / com extenuados
navios?”.
Um momento depois e o eqüino
não é mais metafísico. Místico, agora tem preocupações
atavistas e hologenéticas, como em “Atávica 2”: “Aonde foi
que estivemos / antes de estarmos no calmo / desenho da mão?”. E
também em “Túnel”: “Fui ontem peixe recuado / às ferrovias
desertas / onde cavalo florido / na eternidade pastei”. Quer desvendar
suas vidas passadas: “Há campos de mim sobre meu ombro / com água,
delírio e pombos. / Úmida e remota bacia / como os longos
países de chuva / de que ainda resta lembrança”.
Em pouco tempo, contudo, já
não é esotérico, místico ou metafísico.
É uma subconsciência à procura de um “eu anterior à
individualidade”, mergulhando numa auto-análise psicológica,
numa “Espécie de Delírio Brando”: “Invento um dia verde:
imenso pasto alado. / Pensando em pôneis./ Cinzento Abril cavalga-me.
/ Por lá, pôneis. / A dor de habitar-quase / ferrovias suadas
penetrando / no vão dos sentidos surdamente / como varais que invadem
nosso quintal de relinchos, profanando. / Canso-me da alma como da idéia
/ e da liberdade. / A alma é a Yamaha. / não um pônei
— e está fluindo”.
É capaz, contudo, de ser físico e instintivo, embora a cópula
possua igualmente colorações de consciência, como em
“Talâmica”: “Acima o ramo / (cúmplice) / de balsamadina. /
E a amada possuída / contra o muro e a hera: / delaminha a dor solvente
/ e múrmur. E! Compáscua ave / incandescente. / Paraperplexa?”
Como também de lançar
um olhar crítico-interrogador sobre a própria espécie:
“Cavalos não sabem estrelas: / tergiversam? comtemporizam? / Não
sabem a piscina aromática / seu prurido quas e lúdico? /
Golpeiam a grama rente / por golpear a grama rente? / Donos de pouca ciência?
/ Categóricos? definitivos? / Ponderáveis? computados? /
Paisagistas? Paisagísticos? / Numismatas? condenados?”.
UNIDADE
Muitas das imagens de “Cavalo Inundado”
poderiam ser chamadas “surrealistas” ou, quando não, de “absurdas”
(psicologicamente falando). O que não quer dizer, necessariamente,
que faltem significado e coerência. No todo (e não na parte),
na essência (e não na superfície), a obra é
o retrato lógico dos fatos absurdos da consciência que procura,
nebulosamente, o sentido último de sua existência.
O livro guarda, na verdade, uma
unidade à espera apenas do desvelamento por parte do leitor. Uma
tênue, única e invisível linha entreliga todos os trabalhos.
Com um estilo sintético (mas não telegráfico) que
seria o correspondente em poesia à forma dos romances de Cortázar,
o autor faz conviverem numa única obra todas as mundividências
que configuram o momento histórico presente. Há desde a mística
dúvida quanto ao passado até as filosóficas incertezas
diante do futuro, passando por concepções de vida que sugerem
a total disponibilidade ante o devir dos fatos e dos seres.
Intencionalmente as idéias
são menos explícitas, mais implícitas; há mais
impressões do que expressões. Os poemas, tanto internamente
como em relação um ao outro, não obedecem qualquer
ordem aparentemente racional; são dispostos de acordo com apenas
uma lei — a do momento — e uma regra — a do fluxo da consciência.
Mas tudo isso concorre para compor o quadro do ecletismo e das indecisões
que dominam a humanidade contemporânea, perdida entre teorias escatológicas
que anunciam o fim próximo, e o retorno às origens. As indefinições
e imprecisões do livro são as mesmas que tomam conta atualmente
das sociedades e dos indivíduos.
Obra imatura, escrita aos 20 anos,
numa fase que o autor certamente já aperfeiçoou ou superou,
“Cavalo Inundado” vale, senão como interpretação e
síntese, ao menos como retrato e análise da atualidade, concebidos
dentro dessa mesma atualidade. Elementar nas construções,
complexo na forma e na significação, o livro define-se tanto
pelo que diz como pelo que deixa de dizer, como bem o indicam os dois últimos
versos do “Preâmbulo” com que o autor convida: “Deixemos aqui os
nossos sapatos / e tudo o mais que não nos fará falta: /
o jornal, a tristeza, a glória e o sexo. / Seremos simples como
o ouro / em sua substância e em seu silêncio”.
O tom de convite e proposta é
repetido em “Alva”, o último poema do livro, indicando que o mistério
e a caminhada em busca de verdades não termina, mas começa:
“Agora o multiplicar de passos / na alameda vermelha: / que grande e aconchegada
multidão que somos. / Sentemo-nos, eh companheiros / em pose de
quem muito pensa / e aguarda a aurora de fumo / branco, / esse que é
auréola e começo de morte / O não poder ver os longes
/ ou o pouso de músicas / que importa? / Amanhã pode ser
libertação e / outro século / detrás dos muros”.
Correio Popular (1975) |