Jogo irônico contra o velho clichê literário


Luciene Azevedo




Em Romance bandalho, publicado em 1984, Eustáquio Gomes dialogava indiretamente com os sucessos editoriais da década anterior, em que predominava a quase obsessão pelo romance-reportagem, cujo realismo e apego à referencialidade visavam a purgar a violência e a arbitrariedade do regime militar. Seu novo livro, A Febre Amorosa, assume um tom anarquizante em relação a essa tradição  quando considera a virulência da imaginação como uma das fontes para a escrita. 

O que se conta é o tórrido envolvimento de Luís Alvim, médico sanitarista, recém-chegado a Campinas com o objetivo de combater a epidemia de febre amarela que se dissemina pela cidade e Angélica, esposa do Barão da Mata,  cuja ausência, provocada por uma viagem de negócios, favorece a traição. 

Ambientada em 1889, a ''crônica'' tem como pano de fundo a queda do Império e a substituição pelo novo regime: a República. Ao lado dos personagens ficcionais, encontram-se personagens e fatos históricos caricaturados pelo que o narrador chama de um ''forte sentido cognitivo'', ou seja, sua imaginação. A ambigüidade da inflexão referencial se relaciona com a maneira pela qual os fatos históricos são ''bandalhados'' pela imaginação. 

Montagem - A história toma o fragmento como uma perspectiva de montagem de seus vários planos.  As três partes do romance complementam-se e se esclarecem mutuamente. O que fica em suspenso na ''crônica'' é solucionado pelas informações a respeito dos nomes que atuam no enredo e se completa pela recriação de situações nos lugares em que ocorrem. Logo, a linearidade só é possível de ser reconstituída pela perspectiva do fragmentário, exigindo que o leitor interaja com o jogo proposto pelo desarranjo da organização do texto. É assim que funciona o índice das principais personagens cuja indicação numérica remete à primeira parte do romance. 

A escrita ágil colabora para que a leitura da narrativa seja feita de uma sentada só, como Poe preconizava que se fizesse com os contos, embora a atitude do leitor tenha de ser ativada por uma performance,  não só de  manipulação das três partes da história como pela reconstituição das reviravoltas do enredo que muitas das vezes têm suas conseqüências antecipadas às causas. 

A pluralidade de fontes apontada para a crônica, ''as atas da Câmara Municipal de Campinas, o depoimento verbal do cronista e historiador bissexto J.B.Canastra, e os jornais da época'', pretende assegurar a veracidade dos fatos e a objetividade do narrador. Mas logo é desmascarada pela fragmentação da voz narrativa, Luís Alvim, o personagem, J.B.Canastra, uma das fontes, e o narrador propriamente dito, sugerindo a improbabilidade da verossimilhança: ''A multiplicidade de narradores não te sugere algo de suspeito?'' 

Ironia - A contestação à representação realista clássica marca-se pela ironia com que são tratados os representantes dessa escola: Zola e Júlio Ribeiro são considerados ''notáveis inventariantes''. A impossibilidade do realismo é acusada pela imaginação desregrada do narrador apesar da intenção de manter-se fiel ao rigor dos fatos, ''ou isto não é uma crônica''. 

A Febre Amorosa satiriza a permanência do traço naturalista na ficção, ao associar a epidemia ao desregramento social e sexual, e brinca com os clichês de uma literatura que tenta retratar a identidade nacional: ''Que espécie de nostalgia formiga no ar encrespado dessas terras sedimentárias, que em névoas pré-históricas teriam sido cobertas por águas oceânicas?'' 

Nada é o que parece ser. Nem romance histórico, nem novela picaresca, embora estejam presentes características de ambos os estilos. O romance também não se quer alegórico ao pé da letra, ainda que haja uma associação evidente entre a relação sexual de Luís Alvim e Angélica e o contexto político: ''Mas agora alguém fincava-a [a bandeira republicana]no mais fofo terreno monárquico com a volúpia de um conquistador''. 

Além do hibridismo dos gêneros, o sexo e o humor presentes na narrativa justificam sua reedição em um momento em que essas características tornam-se tendências da produção literária contemporânea que aposta na reinvenção da capacidade de criar histórias. 

Jornal do Brasil, 29 de setembro de 2001