Malícia afiada
Mirian Paglia Costa
Um livro de poemas, um de contos, uma novela e uma pequena biografia do
escritor americano Ernest Hemingway, publicados nos últimos nove
anos, não arrancaram do anonimato literário o jornalista
Eustáquio Gomes, 31 anos, mineiro radicado na cidade paulista de
Campinas, mas foram-lhe úteis para afiar o estilo.
Transformado em hábil artesão, ele associa uma ampla documentação
histórica a uma imaginação fértil para oferecer
agora A Febre Amorosa, um curto romance que se passa em Campinas no ano
da Proclamação da República, 1889, e conquista imediatamente
a simpatia do leitor.
Num cenário verdadeiro, entre personagens que existiram, Gomes introduz
figuras e situações ficcionais de folhetim do século
passado, com uma diferença: em vez de valer-se do suspense ao final
de cada capítulo, como os folhetinistas e os autores de telenovelas,
o romancista confessa toda a trama logo de início. Enquanto o cemitério
se enche e a cidade se esvazia por causa da febre amarela, o médico
republicano Luís Alvim, um devasso recém-chegado do Rio de
Janeiro, conquista os favores da jovem baronesa Angélica, a esposa
ainda virgem do velho monarquista Da Mata, que se encontra em viagem de
negócios. Durante a breve ausência do barão, Angélica
abre seu corpo a lições que vão muito além
das cândidas prestações sexuais do casamento e sela
seu destino simbólico. Depois de tudo, ela há de morrer,
junto com a Monarquia agonizante.
Revelada a história,
é na maneira de contar que está a força do romance
de Gomes. As aventuras eróticas de sua Angélica, que lembram
as do personagem-título de um romance do Marquês de Sade,
são exploradas em três partes que se completam. Na primeira,
a crônica dos acontecimentos é apresentada em capítulos
curtíssimos, que abrangem também a situação
política da época e seus reflexos na cidade. Há cenas
hilariantes que nascem do confronto entre a mentalidade provinciana e a
licenciosidade pública dos amantes. Nas partes subseqüentes,
os mesmos fatos são outra vez expostos — ora a partir dos lugares
onde ocorreram, ora a partir dos personagens que deles tomaram parte.
Dono de uma tesoura que recorta perfis sob medida e é inclemente
diante do excesso de palavreado, Eustáquio Gomes é sempre
exato. Com graça, malícia e boa pesquisa histórica,
ele faz um folhetim moderno que busca o riso e não as lágrimas
do leitor.
Veja, 26 de setembro de 1984> |