Altas febres
Manoel Henriques
Quando A Febre Amorosa, de Eustáquio Gomes, chegou para os leitores,
em 1984, poucos compraram. Um deles morava em Brasília. Não
costumava comprar livros, mas era fascinado pelo cinema, que, para ele,
era assistir a filmes de Fellini.
Na verdade, não eram filmes de Fellini. Era um filme de Fellini,
que ele tinha visto não sabia onde, nem quando — E La Nave Va, onde
cheiros de bosta paquidérmica se misturam com compassos de ópera.
Som e cheiro, era o que lembrava. E lhe bastava.
Comprou o livro meio por acaso, meio por obrigação. Estudava
História na Universidade de Brasília, e o ano de 1889 o interessava
por conta de um trabalho que tinha que entregar em uma semana. Leu que
se tratava de um romance cheio de sacanagem, feito filme de Fellini. Onde
sacanagem fala de História, e História de sacanagem. Leu
na orelha do livro, escutou, não teve dúvida, comprou.
Seu professor de História na UnB mandou ele à merda e, ato
contínuo, procurar outro departamento. Ali ele não estudava
mais. Ganhou um MM, e foi tentar Comunicação, Curso de Cinema,
onde o campus, se não mais anarquista, era pelo menos mais arejado
na conjugação entre sons e cheiros.
Ganhou uma bolsa para estudar na Itália. Guardou nela o livro de
Eustáquio Gomes. Gostou do que viu por lá, mas, principalmente,
do presente de um amigo: a nova edição de A Febre Amorosa,
que a Geração Editorial devolve agora aos leitores que têm
a nítida impressão que a História só vale se
for farsa, folhetim e poucas pausas para a respiração contida.
E foi assim que vingou essa resenha.
Agora a febre volta. Talvez mais alta.
Reabastecem de mercúrio os termômetros, de alfafa os cavalos,
de gases os rinocerontes e os alfarrábios das estórias mal-contadas.
A Febre Amorosa acontece na cidade de Campinas (SP) em 1889, quando os
barões do café e os republicanos discutiam quem iria mandar
no pedação de terra chamada Brasil. Foi também o ano
em que Campinas conheceu uma epidemia de febre amarela (ou azul, verde
e branca). Uns bichinhos safados — bactérias, vírus, sabia-se
lá o que — dizimaram boa parte da população local.
A historiografia oficial chama de febre amarela, já que é
uma cor que sempre chama atenção.
De toda forma, a verdade é que matou gentes & cachorros &
bovinos. Está tudo lá nos jornais daqueles tempos, principalmente
no Diário de Campinas, na coleção arquivada do Centro
de Ciências, Letras e Artes, e é uma das fontes básicas
do autor para a crônica da febre. Enquanto republicanos e monarquistas
se engalfinhavam, um romance rolava. A jovem baronesa Evangélica,
casada com o velho barão assinalado pela decadência, se apaixona
pelo Dr. Alvim, um médico republicano que vem da Corte do Rio cheio
de sacanagem pra dar e receber.
A Febre Amorosa deixa em seu rastro vários suicídios, incêndios,
cenas dignas de relato do Marquês de Sade. E fala também de
figuras que meu professor de História não queria misturadas
com aquele povo, cenas dignas só de uma cabeça alucinada.
Correio Braziliense, dezembro
de 2001 |