Um folhetim satírico
e imaginativo
Fábio Lucas
A dedicatória do "romance bandalho" A Febre Amorosa, de Eustáquio
Gomes, ao prestar tributo a Márcio Souza, Ivan Ângelo e Oswald,
dá a primeira pista para a sua análise.
Com efeito, do autor de Galvez, Imperador do Acre, a narrativa mantém
o tom jocoso, a graça satírica e a velocidade de comunicação
com o leitor. Do romancista de A Festa provém o gosto da montagem
e de preparação de efeitos inéditos, até o
fato de escalar para a parte final "Nomes" o elucidário de circunstâncias
que esclarecem o significado da trama e o desempenho das personagens. De
Oswald, por fim, A Febre Amorosa guarda a audácia irreverente, a
crítica dos valores e a verve imaginativa.
O romance de Eustáquio Gomes revela parentesco, ainda, com outras
tentativas contemporâneas, como, por exemplo, com O Grande Mentecapto,
de Fernando Sabino, e as novelas apimentadas de Deonísio da Silva,
companheiro de geração do autor.
O ambiente do romance bandalho é Campinas do fim do século
passado, época da libertação dos escravos e da luta
entre monarquistas e republicanos. O traço de época incide
principalmente sobre o surto de febre (amarela? verde? azul? os diagnósticos
variavam) e suas conseqüências sobre a população.
A primeira parte do romance, "A crônica", é constituída
da montagem de pequenos quadros narrativos, enumerados. São 189
ao todo. A segunda parte, "Lugares", acrescenta à primeira as instâncias
privilegiadas de encontro das personagens (rua, bar, bordel, acampamento,
sobrado, delegacia, etc), em que se expandem as funções narrativas,
como as intrigas políticas e amorosas, ambas contempladas com malícia
e despudor.
Finalmente, a parte terceira "Nomes" arrola personagens da vida fictícia
e real que interferiram, direta ou indiretamente, na teia romanesca. Trata-se,
segundo o autor, do "índice remissivo das principais personagens,
evocadas ao sabor desta crônica e de seus desarranjos". Ali não
faltam Carlos Gomes (visto numa verdadeira cena de opereta), Campos Sales,
Rui Barbosa, o Conde D'Eu, Alberto Faria, Napoleão, Voltaire, etc.
O leitor acompanha, deliciado, uma aventura amorosa de puro sexualismo
instintivo, entremeado de outras ocasionais na mesma direção.
Parece estar diante de uma paródia do romance naturalista. Daí
o ambiente naturalista de Campinas interferir no relato, sendo Júlio
Ribeiro e seu magno patrono, Zola, "certo inventariante francês",
personagens de conexão da intriga. E, também, a presença
tétrica da morte, na cidade vitimada pela febre, serve para acordar
os instintos públicos, num determinismo de escola, ou seja, uma
razão de causa e efeito.
Temos A Febre Amorosa como leitura fluente, digestiva, fascinante como
um best-seller. Mas o autor se preocupa com a dimensão intelectual,
que é diluída sutilmente no texto, com sagacidade e competência.
A pesquisa histórica e ideológica oferece fontes de curiosidade
e surpresa. Assim, o saber se impõe à narrativa sem desfigurá-la.
Saber pessoal e saber das gentes, coletivo e anônimo.
A recuperação do passado de Campinas é uma forma de
reler a história e a política, apontando dimensões
ideológicas que a história consagrada não registra.
E tem seus disparates, como, por exemplo, recordar no trecho atual a anedota
da estrada Transviadônica.
O erotismo "bandalho" tem uma herança, apontada no elenco "Nomes",
terceira parte do livro: o Marquês de Sade. Daí a falta de
idealização das situações amorosas, ou sequer
de preparo das circunstâncias de excitação sexual.
Tudo é mecânico e bestial: há, mesmo, uma cena de zoofilia,
na busca de prazeres do médico Alvim e da cliente Angélica
(estes nomes conotam ironicamente), amada do barão Da Mata e irmã
de Bilota, também, como ela, ninfomaníaca.
O jornalista Barcelos, o padre Mendell, a mulher do dono do circo de cavalinhos,
a "bela Jeanne", todos entram na ciranda do sexo, para não falar
das habitantes do bordel de Madame Zilá. Mas não se tem a
dimensão psicológica de uma só dessas personagens,
nenhum suporte fectual para a escalada do orgasmo, nenhuma faixa de drama
interior ou de hesitação íntima.
Só a lógica do inconsciente pode explicar como o romancista
descarta, pela morte, as mulheres mais sensuais: Angélica, Jeanne
(esta pelo suicício) e Bilota (por atropelamento). O jornalista
Cotrim se suicida e J. B. Canastra é também atropelado. E
a sede dos maiores pecados, o sobrado do barão Da Mata, acaba-se
num incêndio (como o Ateneu de Raul Pompéia).
Soluções de folhetim, claro, de que A Febre Amorosa é
um exemplo. Quinta obra do romancista mineiro, radicado em Campinas.
O contrapeso ideológico da disputa política monarquistas
e republicanos é atribuído à personagem Búfalo
Bill, ocupante do acampamento, acusado de roubo de cavalos, fumador de
haxixe, pensador libertário, anarquista de idéias controvertidas.
Sexo, história, política e humor, eis a síntese.
E um bom resultado.
Afinal, 29 de janeiro de 1985 |