Novelas satíricas
Wilson Martins
É grande e vigorosa
a linhagem das novelas satíricas brasileiras, que, começando
com Manuel Antônio de Almeida (Memórias de um Sargento
de Milícias, 1854/55), alcançou os pontos altos no século
19 com José de Alencar (Guerra dos Mascates, 1874) e Luiz
Guimarães jr.
(A Familía Agulha, 1879), continuando,
no seguinte, com José Maria de Toledo Malta (Madame Pommery,
1919), J. M. Cardoso de Oliveira
(Dois Metros e Cinco, 1936)
e o Jorge Amado que, geralmente satírico nos romances pós-stalinistas,
coroou-os todos com Farda Fardão Camisola de Dormir (1978).
Tudo isto sem esquecer o esquecido José Agudo que, com Gente
Rica (1912), exerceu inquestionável influência sobre Toledo
Malta.
Madame Pommery foi recentemente
descoberto pelos noticiaristas literários, partilhando a estante
dos esquecidos com o Adelino Magalhães dos Casos e Impressões
(1916), perto de quem o desafiador Oswald de Andrade faz figura de
inocente coroinha de igreja. A esta galeria ilustre (para mencionar apenas
os mais destacados) Eustáquio Gomes acrescentou, em 1984, a pequena
obra-prima do gênero até hoje à espera do reconhecimento
crítico que lhe é devido (A Febre Amorosa: Romance
Bandalho. 2ª. ed., São Paulo: Geração Editorial,
2001).
É livro que, como
o de Hélio Bloch (A Tartaruga Cibernética. Rio: Expressão
e Cultura, 2001), distingue-se, desde logo, dos numerosos outros ultimamente
publicados por fazer da sátira um exercício da inteligência
irônica, sem confundi-la com a chalaça vulgar, o humor grosseiro
ou a salacidade infantil. Hélio Bloch tomou por tema os meios boêmios
do Rio — jornalistas, artistas, publicitários —, ou seja, nas palavras
de Artur Xexéo, o seu modus vivendi da década de 60:
“As desventuras de Salatiel nos levam a um tempo em que se vivia na fossa,
discutia-se política nos bares, só se ia à Barra para
freqüentar motéis e cantavam-se as curvas de Miss Renascença.
Hélio Bloch recupera uma cidade... não, um país que
vivia oprimido pela ditadura mas não deixava de se divertir.”
No que, aliás, só
repetia consagradas tradições da vida literária, com
ou sem ditadura, bastando lembrar a geração de Olavo Bilac
— que, assim mesmo, fez a Abolição e a República —
ou a de Mário de Andrade, que fez o Modernismo e o Tenentismo —
para nada dizer dos clones provincianos que os imitavam nas diversas capitais
e cidades do interior. Cada geração só se sente viver,
realmente, com a ilusão de estar inventando o mundo. Nestes casos,
a idealização do passado é apenas a nostalgia da juventude
que se extinguiu, com algumas pitadas subconscientes de rancor implícito
contra os que exibem afrontosamente o espetáculo da própria
juventude...
Assim como Luiz Guimarães
jr. devia muito a Manuel Antônio de Almeida e, por inesperado, ao
José de Alencar de A Pata da Gazela, Hélio Bloch deve
alguma coisa a Jorge Amado, particularmente no episódio da eleição
acadêmica: “Em noite de gala, o Petit Trianon, profusamente iluminado,
regurgitava de gente, além dos numerosos e ilustres convidados de
sem-pre [...] “Encarregado de receber Salatiel com o dis-curso de praxe,
Protásio surpreendeu a platéia com uma oração
tão brilhante que fez o recipiendário tomar consciência
da própria insignificância. Salatiel percebeu
que “não seria capaz [...] de superar, ou sequer alcançar,
o seu próprio brilho, tão bem apresentado [...] É
um Salatiel em pânico que sobe ao púlpito [...] Uma dor profunda
e aguda como jamais sentira invade seu peito. Fulminado por um infarto,
Salatiel despenca do púlpito, chegando ao chão já
morto.”
É justo reconhecer
que a novela de Eustáquio Gomes tem mais “peso específico”
na tabela da química literária, a começar pela estrutura
narrativa riqueza de invenção e alta qualidade estilística:
“São quatro as fontes principais para esta crônica, e, uma
vez mencionadas, não vejo motivo para citá-las novamente:
as atas da Câmara Municipal de Campinas referentes aos meses de março
e abril de 1889; o depoimento verbal do cronista e historiador bissexto
J. B. Canastra; os jornais da época, principalmente o Diário
de Campinas, cuja coleção completa é uma relíquia
do Centro de Ciências, Letras e Artes. A quarta fonte é
o meu forte sentido cognitivo, que Canastra, para bulir comigo, chamava
de imaginação”.
A história da epidemia,
que, a respeito de outras cidades, tem sido escrita na pauta dramática
e metafísica, é aqui descrita no modo irônico e desmistificador,
satirizando os costumes, os preconceitos e a hipocrisia, as mazelas sociais,
a prosápia das grandes famílias, sem esquecer, bem entendido,
as cenas fesceninas na atmosfera opressiva da comunidade sem defesa: “Nos
dias negros, com as esquinas desertas clareadas por fogueiras de alcatrão,
podiam ser vistos pelas ruas dois ou três tílburis, não
mais. Dentro, sonolentos, sacolejavam os médicos entre baforadas
de charuto. Iam de um extremo a outro da cidade contabilizando os mortos.
Contabilizavam também o tédio que se acumulava dentro, como
a sujeira nas caixas de gordura e a bosta fedorenta nos quintais.”
Neste ambiente irreal e realista,
movimenta-se todo um microcosmo de vivos e mortos, cenas inesperadas, perplexidades
e oportunismos, superstições populares e impotência
científica: “Finalmente chegou o momento em que todos os mata-bichos
começaram a falhar: o conhaque, a caninha pura, a com limão,
a com limão e pólvora. Torres Homem recomendava o sulfato
de quinino, Domingos Freire o salicilato de sódio. Prudente, a maioria
acendia uma vela a Deus e outra ao Diabo, ministrando tanto o salicilato
quanto o quinino.”
Não parece inoportuna uma
sátira sobre matéria tão grave? A verdade é
que todos passaram a conviver com a peste, tomando-a, afinal de contas,
por mais um episódio da vida cotidiana, não impedindo em
nada os adultérios, as maquinações políticas
e as distrações urbanas. Velhos aristocratas martirizavam-se
“debaixo de uns peitinhos de ninfa”; havia quem se dedicasse a ler Zola
no original; jornalistas ociosos planejavam “uma república sem impostos
e uma nação feliz”; o dr. Florence declarava que “a
epidemia mostrava uma tendência claramente centrífuga”, e
assim por diante. Tal se desvendavam as harmonias ridículas correspondentes
aos fatos melodramáticos da vida.
O Globo, Rio de Janeiro, 16 de
fevereiro de 2002, e Gazeta do Povo, Curitiba, 11 de fevereiro de 2002. |