Ainda o Romance
Uilcon Pereira
"Todo mundo sabe que até o fim do século o romance se esgota",
assegura um personagem. Afinal, essa forma expressiva já se encontrava
em pleno estertor. "Então, um brinde à morte do romance.
Vocês acabam de matar uma porção de gente que nem nasceu
ainda", replica outro participante da discussão.
A conversa lembra as que hoje ouvimos em porta de biblioteca, aula de letras,
saguão de faculdade, escritório de editoras ou redação
de jornal. No entanto, desta vez ela se desenrola num barzinho da moda,
em Campinas. Não a atual metrópole, mas a "capital agrícola
do estado", fins do século passado. E os interlocutores, no caso,
pertencem à elite do poder local, republicanos ou monarquistas,
padres, aristocratas do café, jornalistas, profissionais liberais.
As respostas à pretensa morte do romance, aliás, encontram-se
aí: centenas de obras decisivas, ao longo do século XX. Algumas
aparecem no tributo que abre este livro — Oswald, Ivan Angelo e Márcio
Souza. Outros poderiam ter sido lembrados, inspiradores ou afins de A Febre
Amorosa, de Machado a Valência Xavier dos originalíssimos
Mez da grippe e Maciste.
O desdobramento do conjunto se perfaz através de pequenos blocos
narrativos — contos, vinhetas, minibiografias, cartas, diálogos,
relatórios, artigos, estatísticas, depoimentos — reunidos
em três seções que se complementam e enredam-se em
múltiplos níveis. Na primeira, "A Crônica", desenham-se
os fatos nucleares, o enredo propriamente dito: em 1889, durante os meses
da febre amarela que assolou e empobreceu Campinas, ocorre um "amor louco"
entre médico da Comissão Sanitária vinda da Corte
e jovem baronesa, infeliz no seu casamento por conveniência, quase
intocada sexualmente e com "medo de envelhecer sem ter conhecido o amor".
Como pano de fundo para a tragédia, a crise de transição
entre o Império e a República, os conflitos sociais, o inferno
em que se transformou a vida urbana nesse clima de pânico, doença,
morte e dor. De contrapeso, um surpreende grupo de marginais e drogados,
precursores das diluições anarquistas e orientalistas, vivendo
em barracas na periferia, "tocando violão e compondo baladas indolentes".
As outras partes combinam e recombinam seus fascinantes elementos. Em "Lugares",
vêm ao primeiro plano os cenários nos quais a febre amorosa
duplina e reflete, em outra dimensão, a traiçoeira epidemia
que ronda a todos. Em "Nomes" surge um índice remissivo das principais
figuras e seus criadores, líderes políticos, amigos e desafetos.
A cada nova aproximação, o autor acumula informações
e perspectivas iluminadoras, para amarrar as pontes do relato.
Nossa literatura ganha assim um texto de leitura indispensável.
Então, um brinde ao romance brasileiro, a ser curtido e prolongado
até mesmo por uma porção de gente que nem nasceu ainda.
Jornal do Livro, janeiro de 1985 |