O romance da sátira
política absurda
Malcolm Silverman
A definição do que constitui um romance essencialmente satírico
e político situa-se numa zona nebulosa, pois é difícil
determinar de que modo a extensão e a fusão desses motivos
prevalece sobre outros determinantes. (...) No folhetim de Eustáquio
Gomes, a paródia combina com a parábola, ao mesmo tempo ridicularizando
os fundamentos políticos do (jovem) República através
de uma mistura grotesca de motivos em torno de duplicidade, paixão
e morte. O microcosmo de areia movediça em questão é
a Campinas provinciana, cujo panorama mórbido em A Febre Amorosa
é retratado em abril de 1889. Rotulado como "romance bandalho",
seu próprio título é um trocadilho em torno da febre
amarela que de fato dizimou a população local durante os
dias finais do Império.
Eustáquio Gomes serve-se de um narrador-pesquisador sarcástico,
bem-humorado e intrometido, cenário factual e figuras da vida real,
produzindo, com humor cáustico, uma revisão da história
política brasileira. Os interlúdios eróticos e o uso
copioso de linguagem chula fazem muito mais do que estabelecer uma alternativa
contestável e silenciosa à (presumida) pureza monárquica:
eles refletem um estilo libertador. Parcialmente inspirado, como Márcio
Souza, em Oswald de Andrade, e conseqüentemente ampliado por uma estrutura
caótica, esse estilo reflete o republicanismo "radical", personificado
no protagonista em face do seu comportamento vis-à-vis profissão
e obsessão.
Dividido em três partes, o livro é inicialmente apresentado
de modo linear e convencional, depois de através de ações
tanto maiores como menores que se desenrolam em mais de uma localidade.
As duas últimas partes essencialmente expandem a primeira, porém
o fazem desordenadamente, desenvolvendo-se em seqüência cronológica.
Ao mesmo tempo, as três partes de A Febre Amorosa explodem em instâncias
rápidas, tratadas como minisessões, umas com apenas algumas
linhas, cuja quantidade e mudanças acrescentam-se à atmosfera
desesperada e socialmente diversificada que serve de testemunha à
cadeia meteórica dos acontecimentos.
Luís Alvim, jovem epidemiologista republicano, chega à cidade
empestada pouco entusiasmado com a tarefa gargântua de tratá-la.
Em vez disso, ele se vê presa de uma paixão mútua com
Angélica, uma baronesa casada que não faz justiça
ao seu nome e cujo marido monarquista está propiciamente viajando
a negócios. Angélica revala ser não a corporificação
de um Brasil nascente e efervescente, mas de um império moribundo
e decadente; e, de fato, ela também sucumbe à febre amarela.
Seu marido envelhecido, traído e politicamente reacionário,
não é nada melhor, apenas decrépito e feio. Ele representa
as atitudes ineficazes e as aparências desgastadas do ancien régime
do mesmo modo como o vilão letrado Alvim simboliza a república
emergente: malpreparado e pouco inclinado para qualquer mudança
significativa para melhor.
Como muitos políticos republicanos, Alvim egoisticamente extrai
tudo que pode da monarquia, isto é, de Angélica (favores
sexuais, acomodações opulentas e até alguma vantagem
monetária), justamente quando sua experiência se revela ainda
mais exagerada, dados o medo geral de morte iminente e o acento compreensível
na gratificação hedonística imediata. As metáforas
sexuais sào abundantes na descrição das cenas de amor
do casal, com referências erotocômicas como, por exemplo, ao
seu "mastro em riste como uma bandeira republicana", pronto para penetrar
"no mais fofo terreno monárquico" (p. 34 [da primeira edição]).
Esse tipo de republicanismo superficial e auto-indulgente, a ser logo abraçado
em circunstâncias desfavoráveis, não é auspicioso:
em escala nacional (Alvim reside no Rio de Janeiro), augura reformas políticas
cosméticas, corrupção continuada e uma perpetuação
do legado feudal. Não admira que um comentário passageiro
a respeito do marechal Deodoro, o pai da República, reverbera em
satírica reprovação dos acontecimentos de 31 de março
de 1964: "Tinha um projeto político para o século XX, que
falhou. Um projeto político que mereça levar esse nome não
nasce de uma quartelada" (p. 122 [da primeira edição]).
A fauna local, desde um padre com amante e filho bastardo a um jornalista
subserviente e políticos sem ética, reforça a alusão
contemporânea com flashbacks de pseudo-sofisticação,
hipocrisia social e irresponsabilidade cívica. É interessante
observar que existe até uma burguesia cujas mulheres devoram a pornografia
do período (A Carne) na intimidade da biblioteca da família,
mas se recusam a abrir as suas cortinas com o temor de ver seu autor passando
pela rua.
As contradições e complicações parecem caracterizar
A Febre Amorosa. Suas páginas estão cheias de anedotas históricas
e irônicas, coletivas e individuais, transmitidas com sarcasmo e
colocando a Proclamação da República numa perspectiva
politicamente realista.
In Protesto e o Novo Romance
Brasileiro, tradução de Carlos Araújo, Editora da
UFRS/Editora da UFSCar, 1995.
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