Entre a história e a imaginação


Berta Waldman


A Febre Amorosa, o recém-publicado romance-folhetim de Eustáquio Gomes, inaugura uma coleção — "Tirando de Letra" — e um modo peculiar de somar amor mais febre amarela, situados ambos em Campinas, no ano da República.

Trata-se de um romance de época, se se quiser de uma crônica, onde se evoca um painel que situa o leitor na aresta da República, mas também no registro da epidemia feito de dias negros, de morte, tédio e sujeira. Como se vê, há um afunilamento que vai do recorte de época (a República) para a peste que assola a cidade. E o afunilamento prossegue quando o autor contrapõe aos dois fatos gerais acima citados a particularidade da paixão ardorosa que envolve a baronesa Angélica e o médico sanitarista Dr. Alvim.

O geral enlaça-se no particular e vice-versa. Para selar essa aliança, o autor descreve as cenas de sexo através de metáforas políticas: "Mas agora alguém fincava-a (a bandeira republicana) no mais fofo terreno monárquico com a volúpia de um conquistador". Veja-se ainda esse fragmento de anotação do diário de Angélica interceptado por Alvim: "Ontem, então, foi esplêndido. Abri-me toda para a passagem de sua fatuidade republicana, como alguém que abre a porteira para o cavalo do Marechal Deodoro".

Há um paradoxo aparente entre o painel com intuito (relativo, já que no primeiro capítulo o autor anuncia a intervenção do imaginário como uma das quatro fontes principais da crônica em questão) de reconstituição social e o detalhe dado pela captação de um momento particular de vida, situado no plano do indivíduo. Há neste intercâmbio do geral ao particular a indicação de um modo de conceber a realidade, segundo o qual esta — a realidade — é melhor apreendida na multiplicidade descontínua de cenas, tipos e visões particulares. Aí, a justificação de partes indicia uma cena da totalidade variável, móvel, apoiada na leitura ou percepção do leitor que lhe devolve a inteireza, ao contrário do que ocorre com a visão histórica unitária.

É justamente essa concepção de realidade que pede a composição picotada do romance: capítulos formando blocos curtos que quebram as seqüências corridas e compactas da tradição realista. Lanceta-se o painel e aparecem os aspectos simultâneos e descontínuos que compõem a cena. Quebram-se os rumos, cortam-se os fios, rompe-se o ponto de vista único do narrador. Com isso, o leitor ganha mais de uma versão dos fatos e a possibilidade de entrar no romance por três vias de acesso (as três partes que compõem o folhetim). 

A opção pela estrutura fragmentária, o gosto rabelaiseano pelo palavrão, pela cena chula, a obscenidade libertadora, o grotesco, situam o texto de Eustáquio Gomes na tradição vanguardista do romance brasileiro de 22, que tem em Mário e Oswald de Andrade seus maiores representantes.

Para alcançar maior eficácia na construção do universo grotesco, o autor fala do Brasil do fim do século a partir da província de Campinas. É essa escolha que lhe permite construir um panorama caipira, com bordel, circo, padre, amante e filho de padre, jornalista covarde, outro embrulhão, um hippie prematuro, uma nobre fogosa, um marido traído, homossexualismo, cartas da Europa, etc, além de oportunismo, mau-caratismo, leviandade de políticos, safadeza ideológica — ingredientes e matizes que reconhecemos em nosso cotidiano, hoje, e que mapeiam tanto a capital como a província. Mas, nesta, o traço é calcado, traço segundo vicário e, por isso mesmo, grotesco, melodramático.

Se, às vezes, o autor não consegue manter o pique hilariante, se o desfecho é, em alguns momentos, menos bem resolvido, a grande qualidade do romance está na habilidade com que Eustáquio Gomes alcança construir o grotesco numa crônica resvaladiça entre o fato e a imaginação, o passado e o presente.

Folha de S. Paulo, 7 de outubro de 1984