Os Jogos de Junho
Luiz Carlos R. Borges
Existe uma tradição
do romance no Brasil, que remonta a Machado de Assis, passando por Lima
Barreto, Graciliano Ramos, Dyonélio Machado, que é a do romance
intimista, quase sempre narrado na primeira pessoa e focalizando o tema
do indivíduo solitário, incomunicável ou pouco comunicativo,
sufocado pelo meio social em que sobrevive. O microcosmo contra o qual
se debate, sempre inocuamente, esse personagem, e que termina por vencê-lo,
esmagá-lo, tanto pode ser uma cidade provinciana como a Maceió
de "Angústia", com a redação de um jornal como
o "Isaías Caminha" de Lima Barreto, ou, enfim, o. próprio
jogo de interesses incipientemente capitalista, mas já devorador
de individualidades, dos que não se prestam à competição,
à chamada livre-concorrência, como o "Quincas Borba"
de Machado; mas o desfecho final invariavelmente consiste no esmagamento
do indivíduo, em seu aviltamento, na exacerbação de
sua miséria existencial.
Talvez quem superiormente, e compactamente,
tenha traduzido essa condição humana tenha sido o poeta Cruz
e Souza, em seu belo e catártico soneto, "Vidas Obscuras":
"ninguém sentiu o teu espasmo obscuro, oh ser humilde entre os humildes
seres..."
Mas é no contexto dessa
tradição que se pode, sem dúvida, incluir o romance
de Eustáquio Gomes, "Os Jogos de Junho", recentemente lançado
pela José Olímpio.
Aqui também o personagem
narrador "atravessa a vida presa a trágicos deveres", no dizer exato
do poeta, cumpre sem a menor volúpia o seu ofício de revisor
de um jornal, e sem o menor empenho os seus ônus familiares, dos
quais antes se omite, sequer cuidando de pagar os aluguéis dos cômodos
onde transcorre sua obscura vida doméstica, somente experimentando
algum prazer mais sólido em cumprir suas funções vitais:
dormir, beber suas cervejinhas e copular.
Certamente o traço que melhor
distingue o personagem de Eustáquio, dentre os seus confrades literários,
é a sua quase absoluta inércia. Se Isaías Caminha
ao menos traduz ao longo do romance toda a sua surda mas acre revolta,
sua irresignação com as mazelas do meio em que vive; se Luís
da Silva, o personagem de "Angústia", de Graciliano, assume
uma atitude de desespero ainda que no final das contas se revele
inócua a sua vingança de decadente senhor feudal contra o
ocioso filho da família burguesa em ascensão; se o personagem
de "Os Ratos", de Dyonélio Machado, esgota todos os meios
ao seu alcance em busca do dinheiro que o salvará ao menos momentaneamente;
Juabre, o anti-heróí de Eustáquio, tão obscuro
que seu próprio e estranho nome só é enunciado uma
ou duas vezes durante todo o transcorrer do livro, nada faz para procurar
mudar o seu destino. E um ser humano conformista, apático, desinteressado,
amoral, alienado, tão alienado que não o comove ou envolve
sequer o entusiasmo geral provocado pelos jogos de junho de 1970, certamente
a mais santa e justificável das alienações, porque
fundada na paixão.
Nem por isso o livro deixa de
ser exemplar e político. Político, não no sentido,
usual e sectário de engajado. Político, na medida em que
revela a outra faceta do serpolítico, o seu avesso, o apolítico,
o indivíduo alienado, mas que não pode todavia deixar
de ser considerado por quem se propõe a pensar seriamente e globalmente
o problema.
E se dissemos que o personagem
é inerte, alienado, cumpre porém acrescentar que é
um personagem que escreve, que anota os pequenos episódios de sua
existência e, assim, se redime, se resgata de sua obscuridade e pequenez.
De acrescer, também, os
contrapontos irônicos fornecidos pelos textos jornalísticos
épico-eufóricos característicos daquele período
da Copa de 70, inseridos ao longo do livro ao mesmo tempo em que se acentua
cada vez mais a trajetória do personagem rumo à mais completa
miséria e solidão: desemprego, abandonado pela mulher e desprezado
pelos amigos, o que o conduzirá, talvez é a possibilidade
com que acena a frase final do romance a finalmente tomar plena consciência
de sua condição miserável, ao sentir ao lado de sua
cama a ausência acusadora do berço de seu menino.
Trata-se, enfim, de um romance
de Campinas, que tem a cidade como cenário e por onde desfilam lugares
familiares, como o Faca's, a Rua Onze de Agosto, as imediações
da estação ferroviária, o "prédio mal afamado
da Rua Conceição". O que não é um dado irrelevante,
pois, ao que se saiba, só recentemente Campinas se revelou capaz
de abrigar escritores que pudessem iniciar uma saga do romance da cidade,
do que talvez seja pioneiro "Solidão", de Sebastião
Roberto de Campos, que traça um retrato nostálgico da Campinas
dos anos 40 e 50.
Correio Popular - 16/6/1982 |