O brasileiro estrangeiro
Roberto Goto
Os Jogos de Junho começam
com um aniversário e terminam com um enterro. Entre o início
festeiro, que alude a montanha de meretrizes, e o final lúgubre,
que fala de coveiros e abismos, agita-se o Brasil da Copa de 70, com dribles
e gols, Pelé, Tostão e Rivelino, manifestações
de rua, bandeiras e buzinas, comentários jornalísticos, cartas
de leitores e a palavra do presidente da República.
A história individual é
narrada na primeira pessoa. O protagonista, um obscuro revisor de jornal
chamado Juabre cuja única ambição profissional é
tornar-se redator. A história social imiscui-se na primeira através
de fragmentos que o narrador recorta de jornais e revistas e cola “metodicamente”
entre suas anotações. “Gosto de fazer isso quando me sinto
inquieto, embora não sirva para nada”, explica.
Geminiano, ajunta sobre si a sentença
de um casal astrólogo: “está sempre em movimento e geralmente,
ao falar, está dizendo mais de uma coisa ao mesmo tempo”. Seu discurso,
porém, parece expurgado de toda ambigüidade. O tom nivela os
seus atos, seja ele um adultério ou o assassinato de um pintor homossexual,
condenado por uma doença incurável, que lhe pede “para fazer
o grande favor de o matar” depois de simular o quadro de um suicídio.
Juabre aceita, antes mesmo de assegurar-se de que não corre “o risco
de vir a me separar da minha liberdade”.
Todas as pistas conduzem a um personagem
insensível e indiferente, sem ideologias e filosofias (que ele,
ideologicamente, considera “bobagens”), preocupado apenas em não
“desagradar” ou “decepcionar” os outros. Por isso apoia — verbalmente —
a greve dos gráficos do jornal e picha muros com amigos. Tais gestos
o levam, ironicamente, ao desemprego e à prisão mas isso
também não o perturba: por baixo do seu hedonismo restaria
inconsciente a filosofia de que a existência é absurda.
Isso estaria de acordo com o propósito
consciente e confesso do autor — fazer de Juabre uma espécie de
Mersault brasileiro. Mas o que é metafísica existencial na
obra de Camus, é história política neste romance,
retrato de um tempo enquanto personagem. Se quisermos respeitar a voluntária
filiação literária do romancista, será preciso
dizer que Juabre não é um “estrangeiro” brasileiro, mas um
brasileiro estrangeiro (o que é mais que um jogo de palavras).
Em comum Mersault e Juabre têm
o exílio. O primeiro, porém, na interpretação
corrente, encontra-se exilado no Mundo — metafisicamente considerado —,
espécie de Reino Desencantado sob o governo de um Rei indiferente
cujo nome pode ser Deus ou Absurdo. O exílio de Juabre é
datado e situado: num país singular chamado Brasil, sob o sempiterno
reino da necessidade e o reinado ufanista da Copa.
É no contraponto entre a
narrativa confessional de Juabre e os exertos sobre futebol que se revela
a rica ambigüidade dos “Jogos” — acentuada na medida mesma em que
o narrador busca esquivar-se dela. Os dois discursos, ambos fragmentários,
comentam-se ironicamente e o texto (como o país) vive essa dialética
claro-escuro que se estabelece entre o brilho da jogadas futebolísticas
e o cinzento da vidinha classe-média-baixa dos personagens.
De um lado, o futebol é
denunciado em sua alienação — através de outra alienado.
O ponto de vista exterior — estrangeiro — de Juabre atira um olhar de marciano
sobre aquelas massas de gente gritando gols e agitando bandeiras — que
aparecem então, elas mesmas, como exiladas em seu próprio
País. A festa não é sua, a festa não é
nossa, é de quem pode efetivamente extrair-lhe os dividendos. E
aqueles que parecem ser os seus protagonistas na verdade não protagonizam
nada, como Juabre jogam à deriva, sem acesso ao timão da
grande História.
Ao mesmo tempo, contudo, se a festa
é estranha e absurda, é porque está montada sobre
um milagre — insano e não oficial —, sobre uma paixão que,
de repente, fascina: o milagre de fazer do futebol uma arte poética
— como o define a citação pasoliniana que, para surpresa
do leitor, o inculto e prosaico Juabre destaca para o seu caderno — a despeito
do interesseiro apoio oficial; a paixão de um povo pelos artistas
que ele cultiva no campo árido do seu dia-a-dia. Juabre ele próprio
não escapa a esta paixão: seleciona os dribles mais brilhantes
e os coloca ao lado de conquistas amorosas, fazendo involuntário
paralelo entre gols e cópulas.
Esta saudável auto-ironia
vai aos poucos cedendo passo ao sarcasmo amargo da “A Grande Final”, parte
em que se cruzam tiros de bola e bala, a conquista do tricampeonato e o
"suicídio" de Salvador D’Angeli — outro que, por ser “demais", é
também étranger. Porém, o pintor que pede para ser
morto num apartamento da rua Conceição pouco tem a ver com
o árabe assassinado numa praia de Argel por um francês perturbado
pelo sol. O ato de Juabre, só aparentemente gratuito ("nenhum ato
é gratuito exceto na aparência", reconhece Gide), tem cheiro
de eutanásia. E quem pratica uma coisa dessas é porque no
fundo admite algum compromisso com o outro.
Em suma, Juabre não é
tão o monstro que parece. No final, para desmentir sua excepcionalidade
e jogá-lo no rol dos normais, há aquela perplexidade entre
o abandono e a solidão — e o vazio, enfim tocado, ganha um conteúdo:
"qualquer coisa como um protesto no ar".
Isso, e mais o estilo direto de
quem narra a preparação de uma morte com uma crueza que desnuda
a crueldade social, fazem Juabre ficar mais parecido a um Paulo Honório,
em outro plano, do que a um Mersault: nele, como no habitante de São
Bernardo, dói a compreensão de si mesmo — mas aqui a reificação,
que é terrível, impede seu próprio desvendamento.
Transitando com aparente facilidade
pela vida, no entanto foi despreparado para compreendê-la, apreendê-la
em seu “estojo de carne, ossos, tendões”. Perplexo, para de falar,
procurando evitar o escuro de seus interiores, os outros sentidos daquilo
que diz. Tal despreparo, que ao fundo pode descortinar a face da opressão
e do sistema a que serve, é forma e conteúdo de relações
sociais concretas, sobre ser também argumento de tese filosófica.
Correio Popular - 07/02/1982 |