Depois da Febre
Sérgio Castanho
Depois de sua magnífica “A Febre Amorosa",
inovadora no fundo e na forma, gostosa de ler, arrojada como manifesto
do romance bandalho, deliciosa na historicidade recuperada da Campinas
fin de siècle, Eustáquio Gomes vem-nos agora com um
excelente "Jonas Blau". Eustáquio, que é
mineiro como Drummond, romanceiro como Guimarães (também
mineiro, o Rosa, só que de Codisburgo), jornalista como ele
só, publicitário como Ricardo Ramos e enfim campineiro
da Unicamp como todos que tomam a água de Barão Geraldo,
Eustáquio surpreende como ninguém.
Evitemos comparações. Embora ambos os
romances recuperem momentos históricos significativos (num, o surto
de amarela em Campinas, 1889; noutro, o golpe militar de 1964), entre
ambos há fundas diferenças.
A começar de que, neste, Eustáquio se coloca
mais que no outro. Aquilo que os especialistas chamam de função
referencial, ditadura do narrador, é quase irrecusável no
“Jonas”.
Isso é importante? Só até certo ponto.
A personagem literária, uma vez que é literária,
pertence a outro mundo, o mundo dos signos, cuja relação
com a história da vida é tão complexa quanto
sujeita a equívocos e falácias. Num ponto, contudo,
o entrelaçamento do nível biográfico com o artístico
é perturbador: quando a personagem busca justificar o autor.
A partir daí, há o risco do esotérico (particular,
mundo do eu-casulo) sobrepor-se ao exotérico (público, mundo
de nós).
Creio que em Eustáquio a veia artística
é tão preponderante que nem essa limitação
acontece. Mesmo que a sobreposição ocorra, Jonas não
resulta postiço. Resulta artístico o que não
quer dizer artificial.
A personagem sobrepuja a necessidade, movendo-se
no espaço-tempo do romance com inteira liberdade, transmitindo
vida a todas as outras personagens, que com ela constróem
um universo rico de sentido: um seminário católico em Minas
Gerais, em 1964, exatamente quando irrompe o movimento militar de
profundas (e traumáticas) conseqüências para o país.
A coincidência entre o projeto militar, anticomunista e contra a
corrupção, e a ideologia de amplos setores do clero
na ocasião, responde pela transformação do seminário
num dublê religioso do quartel. O que segue é cômico,
embora trágico na origem.
Acompanhar a formação de legiões
e falanges no seminário às contradições
entre o discurso público do Monsenhor diretor (o Leão) e
seu comportamento sádico nas intimidades com o major masoquista,
representante local da Revolução; o desenvolvimento
entre os seminaristas de mecanismos liberadores num clima de alta
repressão; acompanhar isso tudo, principalmente sem um instante
sequer de chatice psicanalítico-acadêmica, é
bom como vibrar com um gol.
Melhor ainda, porque depois, ao invés dos
infernais comentários, o que vem é sua reflexão, como
nesta passagem em que o romancista faIa "desses animais que nada sabem
(um grilo, uma lesma) e que, por não terem um rosto e uma
consciência, são poupados dessa contradição.
Nenhum símbolo. Tempo algum. O cérebro, não mais que
uma centelha, a vida, apenas um programa neuroquímico que
o empurra para a frente, na direção da comida ou do esconderijo.
E na hora de morrer, que facilidade: somente um minuto de estertor, e pronto,
acabou”.
É sempre assim, depois da febre.
Diário do Povo — abril de 1987 |