Jonas Blau, pequeno grande
herói
Nesse folhetim com sabor de novela
picaresca, uma alegoria do poder ironiza a ficção em que
se transformou o País
Álvaro Cardoso Gomes
Jonas Blau (Brasiliense,
288 págs., Cr$ 125,00), de Eustáquio Gomes, publicado originariamente,
em capítulos diários, no Caderno 2, é folhetim dos
bons, narrativa saborosa, pra ninguém botar defeito. Os acontecimentos
arrumam-se numa seqüência de fragmentos delirantes, compondo
os anos de aprendizagem do herói Jonas Blau. A narrativa concentra
toda sua ação em 64 e passa-se num seminário, o Cristo
Rei. Sob instigação da “Redentora”, monsenhor Leão,
o decano do estabelecimento, procura erguer os ânimos patrióticos
dos seminaristas, criando legiões e postos de comando. Desse
modo o seminário torna-se um simulacro do Brasil, resgatado das
garras da Hidra vermelha pelos heróicos feitos dos militares.
Jonas Blau, o narrador dessa aventura de formação, cresce sob as asas da hipócrita
instituição de caráter fascista. Como o xará
da Bíblia, também mergulha no ventre da Besta, onde experimentará
toda sorte de privações, até sair redimido para a
vida. Só que sua aprendizagem compreenderá também
o encantamento com o arbítrio, com o fascínio da disciplina.
Manipulando habilmente a vaidade humana, explorando os vícios ocultos,
comandado passará a comandante, chegando a chefe de poderosa legião
dentro dos muros do seminário. E, nessa condição,
ajudado por sua polícia secreta, como manda o figurino, domará
as consciências, através do terror e da censura.
Traído mais tarde pelos
camaradas, Jonas mergulha no poço, local privilegiado, onde compreenderá
de maneira cristalina a hipocrisia da instituição, a fraqueza
do poder. Após a primeira experiência sexual, o herói
atinge a necessária maturidade, que lhe permite renegar o pequeno
universo fascista. Em suma: sua aventura dentro dos meandros do poder
significa não só a revelação de sua fraqueza
e do grande edifício que lhe ditava as verdades. Neste sentido,
a narrativa mítica, referente à terra promissora de Evilath,
é também sutil alegoria da destruição do Paraíso,
para que o jovem encontre sem próprio destino.
Esses conteúdos todos fazem
com que o delirante folhetim de Eustáquio Gomes seja mais que simples
crônica de seminários ou colégios internos, cujo modelo
máximo entre nós foi O Ateneu, de Raul Pompéia.
O que dá um caráter específico a Jonas Blau
são as ressonâncias políticas; em realidade, o mundo
opressor do seminário é metonímia de nos-so país.
Os valores santificados, como a castidade, a pureza, a caridade, em certa
medida, equivalem aos de ordem e progresso, que as instituições
militares procuram resguardar de qualquer maneira. A preservação
desses valores se faz em nome de ideais que, maquiavelicamente, justificam
todos os atos.
Essa reflexão sobre o poder
se enriquece quando o autor mostra que o exercício da Força
se encontra, por paradoxal que isto seja, nos que são aparentemente
os mais fracos. Significativa é a cena em que o Monsenhor
aparece chicoteando o corpo nu do major, como a emblematizar a submissão
do Exército à Igreja. Afinal, é um engano pensar
que o "impulso de dominar e subjugar" seja "próprio dos muitos confiantes
e dos muito resistentes. Bem ao contrário, todas as forças
do despotismo são produto da insegurança". Ora, isto explica
o fato de os grandes ditadores terem sido, via de regra, figuras medíocres,
fracas, apagadas, às vezes, um Hitler, às vezes, o pequeno
Jonas Blau.
Inteligente alegoria do poder, Jonas
Blau é um livro que merece ser lido. Sobretudo, o leitor
se deliciará com o estilo, que tem o sabor da novela picaresca.
O tom irônico percorre os fragmentos da obra, dando um sentido critico
especial a essa pobre ficção que sempre foi nosso país.
Num tempo de vacas magras, em que se publica pouquíssima coisa interessante,
é uma satisfação deparar com um folhetim tão
bom como Jonas Blau.
O Estado de São Paulo
(Caderno 2), 07/12/86
|