Jonas Blau
 

Malcolm Silverman



O tema do colégio interno também é um veículo com tons explicitamente autobiográficos e confessionais, onde, paradoxalmente, os jovens conservam a sua independência, apesar de sujeitos a uma supervisão adulta severa e muitas vezes arbitrária. É um tema cujas origens remontam a O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, aquela mistura de tipificação psicológica e alegoria em torno de um Brasil imperial extinto no ano seguinte à publicação do livro.  Os sucessores mais contemporâneos são Informação ao crucificado (1961) e Em nome do desejo (1983), que se desenrolam em seminários católicos estritos. É onde os seus autores-narradores fazem a crônica das lembranças ficcionalizadas da rebelião de adolescentes contra a autoridade, do ajuste tortuoso com os colegas e da sexualidade em desenvolvimento.  Entretanto, enquanto Cony, em Informação ao Crucificado, relata, em forma de diário, a desilusão do protagonista com a doutrina e a prática religiosas, João Silvério Trevisan, em Em nome do desejo, embora também chamando atenção para os abusos costumeiros, usa o tema como cenário para uma relação homossexual tolerada.

Jonas Blau (1986) oferece a contribuição mais notável e recente ao gênero, mostrando similaridades básicas e diferenças refrescantes das obras anteriores.  Trata-se de um folhetim que foi publicado em episódios pelo autor, Eustáquio Gomes (nascido em 1952), em O Estado de S. Paulo.  Seus 18 capítulos, adornados com títulos irônicos e descritivos, são subdivididos em parágrafos curtos, numerados, visualmente sugestivos, de trechos de diário. Alternam desigualmente entre o humorístico e o trágico, o profundo e o trivial. A seqüência fragmentada que se desenrola move-se mergulhando na vida episódica de colégio interno, aqui distinguindo-se por um só acontecimento: a Revolução de 1964.

Os confins isolados são, mais uma vez, um seminário católico, desta vez no interior mineiro, onde o personagem-título, chegando tímido e apreensivo, se incorpora com significante facilidade temática, primeiro dentro, depois fora do miniestado fascistóide. Jonas parodia a intimidação e a censura, porém sempre desarmadas pela justaposição cômica e por uma enganosa, hipócrita e simples descrição. Mais tarde, traído pelos seus pares, ele refuta a tirania; e, num gesto complementar, reconhece a futilidade da sua periódica fuga mental para um paraíso místico: melhor transformar a sinistra realidade num mundo mais agradável do que buscar o escapismo.

Naturalmente, Jonas, junto com meia dúzia de amigos, encontra tempo para proezas "indecentes": salta sobre a faxineira voluptuosa, escreve poemas de amor com pseudônimos, causa um coitus interruptus enquanto foge de um peru (!) e perde a virgindade depois de uma demonstração prática ministrada pelo seu professor.  Todavia, o mais durável em Jonas Blau é a sátira política e o multiestratificado simbolismo que ele representa.  Do mesmo modo como o seminário simboliza o Brasil, também suas intrigas bizantinas se parecem com a barriga escura do leviatã bíblico, penetrada pelo homônimo do Velho Testamento.

O mestre-escola monsenhor Leão, o Rex animalium (p. 76), é um notório pedófilo, a costumeira personificação do seminário, e também do autoritarismo, intolerância e hipocrisia da Igreja, comparável, em nível nacional, ao marechal Castello Branco, líder do Golpe.  E não é por coincidência que ele é caricaturado como um leão selvagem; e o marechal assemelhado a um macaco ridículo; ou que, num certo ponto, um aluno bem doutrinado é surpreendido por Jonas torturando um animal indefeso. Os estudantes até mimetizam com palhaçadas as bárbaras cruzadas medievais assemelhando-as, de modo paródico, à "heróica" marcha do general Mourão Filho — na vanguarda do Golpe — em direção ao Rio de Janeiro.

Os clichês moralizadores de fé, esperança e caridade, para não mencionar castidade, são rotineiramente enfatizados, mas raramente praticados nesse antro religioso de iniqüidade.  Eles ecoam tão falsos como a divisa nacional de ordem e progresso, tão a gosto das Forças Armadas que acabaram de usurpar os poderes constitucionais com a intenção declarada e paradoxal de protegê-los. Quanto a Jonas, ele termina suas memórias juvenis com um tijolo, lançado através do vitral da capela, como para dizer que antes de se começar de novo uma construção, alguma destruição do velho edifício é inevitável, e de fato desejável.

In Protesto e o Novo Romance Brasileiro, tradução de Carlos Araújo, Editora da UFRS/Editora da UFSCar, 1995.