Educação sentimental
Wilson Martins
Se, como observei recentemente,
a condição humana é a matéria privilegiada
do romance (e, em particular, do grande romance), o romance da educação
sentimental é a matéria privilegiada do romance da condição
humana. Nas perspectivas destes comentários, podemos tomar indiferentemente
uma pela outra as palavras novela e romance, mesmo porque é de uma
novela que se trata (Eustaquio Gomes. Jonas Blau. São Paulo: Brasiliense,
1986), paradigmaticamente enquadrada na conceituação escolar
(nem por isso menos crítica) de Henri Bénac: “narrativa que
estuda as repercussões psicológicas do único acontecimento
em torno do qual geralmente se organiza; personagens pouco numerosos que,
diferentemente do conto, não são símbolos ou seres
irreais, mas possuem uma realidade psicológica; distingue-se, entretanto,
do romance porque a sua psicologia não é estudada por inteiro,
mas simplesmente sob um aspecto fragmentário”. Eu acrescentaria
que, na novela, a intriga é retilínea e simples, avançando
sem desvios nem digressões, enquanto a do romance será múltipla
e estruturada em rosácea, irradiando de um centro comum e para ele
convergindo; além disso, no romance, são os acontecimentos
exteriores que determinam o destino dos protagonistas, enquanto na novela
estes últimos decidem do próprio destino, seja por ação,
seja por omissão.
O que no momento nos interessa é a experiência comunicada,
não o que Wayne C. Booth determinou (1961) “a retórica da
ficção” ou a ficção como retórica, menos
ainda o artesanato do ficcionista, estudada por P. Lubbock, em livro igualmente
célebre, 40 anos antes. As questões de forma narrativa são
indiferentes, na prática, para o leitor comum, observa a esse propósito
R. A. Gettmann, pois, sendo a mais protética de todas as formas
literárias” (Harry Levin), o romance não só resiste
a qualquer tentativa de reducionismo formalista, como, ainda, sugere, provoca
e estimula toda sorte de experimentações (dissimuladas ou
sublimadas, na crítica contemporânea, por um vocabulário
absconso e tão pedantesco quase solipsístico).
Da Princesa de Cléves ao
livro clássico de Flaubert, cujo título prestigioso serviu
para designar toda a espécie, passando por Adolphe e Dominique,
para nada dizer de Werther, o romance da educação sentimental
é um ramo vigoroso da literatura de ficção. No Brasil,
a novela de Eustáquio Gomes tem no Ateneu o correspondente inegável,
sendo evidentes entre os dois as similitudes psicológicas, de ação
e de intriga; o que os diferencia é a técnica narrativa,
fragmentária e expressionista em Jonas Blau, discursiva e impressionista
na de Raul Pompéia. O mesmo Harry Levin assinalava que a ficção
persiste em rejeitar o fictício, sendo organicamente realista o
seu tropismo: assim, justamente por ser psicológico, o romance da
educação sentimental requer inserção no histórico
e no sociológico, com o que se embaralham todas as cuidadosas compartimentações
da crítica. As novelas de Raul Pompéia e Eustáquio
Gomes têm, como local narrativo, não colégios imaginários
e abstratos, estereotipados segundo modelos racionais, mas dois estabelecimentos
de ensino facilmente identificáveis; uma e outra expressam sem ambigüidade
a sua respectiva ideologia, republicana em Raul Pompéia (no feixe
plurissemântico que o adjetivo evocava àquela altura), democrática
em Eustáquio Gomes, em plurissemantismo equivalente.
Ambos caem, por isso mesmo, num esquematismo, senão em maniqueísmo,
tão inevitável quanto previsível: o Aristarco do Ateneu
encontra correspondentes nos sacerdotes do Cristo Rei; a educação
sentimental de Jonas Blau é a mesma de Serginho, iniciada pela solicitude
paternal de um e de outro que os conduz à porta dos colégios;
os dois transpõem uma a uma as indispensáveis provas iniciáticas
(sexuais e desasnantes); no ficcionista do século XIX como no do
século XX é evidente a intenção desmistificadora
do colégio e das instituições civis: do colégio
enquanto metáfora das instituições civis e vice-versa;
das instituições civis e do colégio enquanto materializações
da idéia que supostamente representam e de que nasceram. Claro,
a educação sentimental, como a educação cívica,
fazem-se por meio de sucessivas desilusões desmistificadoras. Assim,
a pedagogia será representada pela figura ridícula de Aristarco
(redimido, contudo, pela nobreza com que enfrentou a desgraça e
a monarquia pela figura odienta ou odiada do Conde D’Eu; a República
sonhada por Raul Pompéia e Eustáquio Gomes acaba sendo a
República do general Mourão e os pedagogos do Cristo Rei,
nisto menos respeitáveis que Aristarco, são surpreendidos
pelos porões do estabelecimento em atividades pouco canônicas.
Em Raul Pompéia e Eustáquio
Gomes, o projeto desmistificador acaba por traduzir-se em metáfora
de destruição purificante (pelo fogo, no Ateneu, pela blasfêmia
desafiadora em Jonas Blau). Este último, “cego de frustração”,
depois de todas as suas desilusões educativas, apanha meio tijolo
nos canteiros do jardim: “Sopesando-o, andei até a capela. A canalha
esperou para ver o que ia acontecer. Entrei sozinho na capela, senti o
frescor de suas sombras àquela hora da manhã. Identifiquei
o vitral, o terceiro à direita, procurei não pensar, afastei
o braço o mais que pude, e zás! O tijolo se soltou de minha
mão como a ave aflita da gaiola quebrada. O terrível ruído
de vidro estilhaçado atraiu a canalha em alvoroço. Entraram.
Eu nada via. Limpando u’a mão na outra, caminhei para a porta e
passei por eles como se não os conhecesse”.
A destruição simbólica
do mundo (o “mundo” que o pai de Serginho lhe anunciava à porta
do Ateneu), se não restitui a nenhum dos protagonistas o mundo das
ilusões perdidas, é mais magistralmente descrita por Raul
Pompéia do que por Eustáquio Gomes, que, entretanto, vai
metaforicamente mais longe, pois Jonas Blau investe como um anjo revoltado
contra o princípio divino arquitetonicamente visível. Claro,
tanto ele quanto Serginho haviam completado sem saber a sua educação
sentimental, de forma que o sarcástico paradoxo final acaba dando
razão aos Aristarcos e Mourões contra a inocência dos
idealistas (ou contra o idealismo dos inocentes). Eustáquio Gomes
escreve em estilo vívido e brilhante, “pensando” por imagens romanescas
eficazes. Há, aqui e ali, alguma obscuridade descritiva e, em particular,
algum excesso caricatural, o que também ocorre no Ateneu, onde,
por outro lado, o processo de amadurecimento de Serginho é mais
perceptível que o de Jonas Blau.
Se Raul Pompéia buscou a
“escrita artística” dos mestres impressionistas para traçar
um quadro realista (lembremos que o impressionismo é o estilo orgânico
do realismo artístico), Eustáquio Gomes procura inovar na
exposição e inovou com grande felicidade, criando, com isso,
um estilo que, aliás, não pode ser repetido nem por ele nem
por qualquer outro. Assim, seja qual for a “indiferença” do leitor
comum pelos requintes formais, são estes, afinal de contas, que
renovam a literatura.
Jornal da Tarde, 5 de dezembro
de 1987
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