História com a pegada
de um thriller
Roberto Godoy
Resgatar a história dos primeiros anos da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) poderia ter resultado em um livro apenas
correto - e com garantia de vaga na estante da chatice. Seria assim não
fosse o autor de O Mandarim o jornalista Eustáquio Gomes,
e seu personagem Zeferino Vaz, misto de acadêmico e administrador,
reitor por longos 12 anos.
O livro que tinha tudo para ser tedioso é pegador
como devem ser as novelas e thrillers de conspiração, tramas
da política particularmente.
Ignorando a carga da transcrição de documentos,
atas e discursos, enfim, deixando de lado a base habitual da pesquisa histórica,
Eustáquio optou por escrever uma atraente reportagem com fundamentos
de estilo literário. Ainda assim, foi um trabalho de 20 anos. O
extrato final é delicioso.
O mandarim a que remete o título é Zeferino
Vaz, um paulistano filho de ricos espanhóis da Galícia nascido
em 1908. Médico, professor catedrático aos 27 anos, definia
essa condição como “um mandarinato dos trópicos”,
referindo-se ao estatuto acadêmico da época que conferia direitos
vitalícios aos titulares da cátedra, e mais que isso “uma
espécie de infalibilidade papal”, como dizia a seus interlocutores.
Uma figura e tanto, marcada pela polêmica decorrente do autoritarismo
que praticava abertamente, ao abrigo de uma simpatia quase sufocante. Peculiaridades
que lhe abriram portas pesadas junto aos militares, sem prejuízo
das passagens mais leves à esquerda. O homem, ainda hoje, seria
um grande sucesso.
O livro, pelo qual desfilam personagens contemporâneos
da ciência e das artes, começa no dia em que Zeferino Vaz,
já na condição de ex-reitor, fala com o comandante
do navio Navarino, de bandeira grega, a bordo do qual pretendia chegar
à ilha de Fernando de Noronha. O capitão temia pela qualidade
das informações sobre as condições de fundeamento
de transatlânticos. Em dois telefonemas Vaz obteve os dados e transmitiu
uma mensagem sucinta ao interessado. Incomodado por uma ardência
no abdômen, desligou mais abruptamente que o imposto por seu estilo
de conversas objetivas. Estava sofrendo a ruptura de um aneurisma da aorta,
ataque que o mataria em menos de 7 dias.
Conhecedor da complexa coreografia dos gabinetes e plenários
do Poder, Zeferino transformou-se no único especialista brasileiro
em processo de organização, implantação e administração
de escolas superiores, “sempre um passo adiante do padrão existente”,
destaca Gomes. O estilo revolucionário, se não o aproximou
do pensamento socialista que prosperava à esquerda do golpe militar
de 64, fez dele um guerrilheiro em benefício de seus empreendimentos.
Pequeno e energético, fundou quatro faculdades de Medicina (Ribeirão
Preto, Botucatu, Santos e São Paulo), uma de Engenharia, em São
Carlos, e outra de Economia, também na capital. Instalou a Unicamp,
entre 1966 e 1978. E antes disso foi interventor na Universidade de Brasília.
O Mandarim é rico em revelações
das conspirações pouco ortodoxas que permitiram a manutenção
de Zeferino Vaz no cargo de reitor por 12 anos. Nesse período houve
ao menos três tentativas de derrubá-lo. Em todas elas, como
uma espécie de espadachim da academia, o pequeno (158 centímetros;
60 quilos) professor derrotou os adversários. Preocupando-se, porém,
em deixar em cada um deles a sua marca. Eustáquio Gomes preserva
o viés galanteador do personagem e é generoso com os vilões
da história. É compreensível. Afinal, o cenário
acadêmico obriga bons modos.
O Estado de São Paulo – “Caderno 2” - 03/12/2006
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