O mapa da Austrália
 

Daniel Lopes



Fazer um romance com um enredo dentro de outro, sem deixar de costurá-los com a devida destreza e rigor e, ao mesmo tempo, não deixar essa fórmula matemática muito à vista do leitor, não é tarefa para muitos. Mais de uma vez Eustáquio Gomes enveredou por esta senda, e dela sempre saiu com êxito.

Só por isso eu já lhe indicaria como um dos maiores escritores brasileiros contemporâneos. Mas há ainda as palavras perfeitamente escolhidas, o que dá em um tipo de ironia que Fausto Cunha, exageradamente ou não, disse aproximar-se daquela de Machado de Assis. E há os temas eleitos com grande felicidade, que, sempre repletos de dramas e taras individuais, de um jeito ou de outro dirigem nossa atenção para a história de um país que anda aos trancos e barrancos.

O mapa da Austrália é de 1998, e é dividido em três partes e um epílogo, embora tal separação não esteja explícita ao longo da obra, tão fluente corre o texto.

Em “O mapa” e “O sarau”, que vai do capítulo primeiro ao oitavo, João Ernesto lê, numa reunião de um clube social pertencente a um certo Instituto de feições kafkianas, trechos da estória erótica que acabara de escrever, “O mapa da Austrália”. Fique bem entendido: quando ele chega no sarau para recitar o texto, não esperava que houvesse tantas mulheres na audiência. Pois as há, e pior, para ele: pelo menos metade delas é muito religiosa, e acaba abandonando escandalizada o recinto, enquanto a estória do mapa continua saindo da boca de João. Que assim diverte-se duplamente, pelo fuzuê das conservadoras e pela excitação que sua narrativa provoca naquelas que preferiram não ir embora.

Com uma delas, uma jovem excitadíssima, João faz sexo num recanto e é surpreendido por Margarida, uma autoridade no clube. Como castigo, é embarcado num navio e parte para o exílio. Em alto mar, abre o envelope que a jovem fornicadora havia posto em seu casaco. Trata-se de uma estória intitulada “O anjo do Hospital da Base”, que se passa em Brasília e aborda os últimos dias de Tancredo Neves. Assim, do nono ao décimo sexto capítulo de O mapa da Austrália revezam-se “O anjo” e “No exílio”, com as peripécias de João no dito cujo.

Em “O anjo do Hospital da Base” os protagonistas são um jornalista imbuído de cobrir a agonia daquele herói da Redemocratização (agonia negada pela equipe médica otimista da boca para fora), e uma freira que trabalha no Hospital e tem acesso ao quarto de Tancredo. Ela acabará sendo conquistada pela lábia do jornalista, a quem servirá de fonte; e acaba sendo conquistada também por dotes mais mundanos dele, a quem servirá de amante.

Enquanto isso, no exílio situado para as bandas da selva (amazônica?), João descobre o quanto o lugar tem de permissivo em matérias sexuais, muito embora devesse ser uma espécie de colônia penal, onde aos degredados são instituídos árduos trabalhos burocráticos, como a infinita organização de papeladas. Em um galpão, ele encontra por acaso um manuscrito chamado “A marreca”, que se revezará com o “Diário do exílio” de João na nominação dos capítulos dezessete ao vinte e quatro.

Finalizando, aparece um outro relato, “A fotografia”, sobre um sujeito que recebe duas fotografias que lhe retratam ao lado de uma mulher da qual não se lembra, nem o local e a data em que as fotos foram tiradas, e sai, por assim dizer, em busca da memória. Esse texto intercalará capítulos com “A entrevista” que João faz com o Coronel, figura que foi parar no exílio por um motivo que nos será esclarecido ao longo da série de perguntas e respostas.

No final, todas as estórias dentro de O mapa da Austrália se encontram e o nó é dado com maestria, uma explicando a outra, o que pode parecer uma coincidência fantástica, surreal mesmo, mas, como diz a epígrafe do romance de Eustáquio Gomes, trazida das páginas de Nuñez y Nuñez, “As ficções se pretendem verossímeis; mas a vida, como se sabe, é inverossímil”.

Mais uma vez, Eustáquio – que já havia divertido e feito troça, com a devida elegância, dos monarquistas e republicanos do século XIX em A febre amorosa (1984) – se volta para o show de horror e hipocrisia com que nos brinda o séquito de cidadãos moralistas, de homens da imprensa a militares e industriais, que com sucesso se encarregam de fazer a história do Brasil.

Digestivo Cultural, 04/09/2007

Leia Livro, 10/09/2007