A crítica a serviço
da patota
José Nêumanne
Já está difícil
encontrar exemplares do livro Memórias do Esquecimento, de
Flávio Tavares, e, apesar de ter sido elogiado pelo primeiro escritor
em língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura,
José Saramago, e de haver levado o maior escritor argentino vivo,
Ernesto Sabato, a comparar seu autor com o gênio do romance russo
Dostoievski, ele não amealhou uma fortuna crítica à
altura de seu valor.
Caso semelhante ocorre com o romance
de Eustáquio Gomes O Mapa da Austrália, obra-prima
da literatura brasileira contemporânea, lançado em 1998 e
passado em brancas nuvens, apesar de ser ainda melhor do que A Febre
Amorosa, que está sendo relançado agora também
em silêncio, mas depois de o autor ter sido festejado como um novo
Machado de Assis.
Os críticos estão
em plena atividade, lançam autores de sua própria moda para
a glória e enterram outros fora dessa voga na vala comum do anonimato.
Mas continuam deixando passar por debaixo dos dedos, como os maus goleiros
engolem frangos sob o vão das pernas, obras merecedoras de sua atenção,
das quais as duas citadas são exemplos.
Os críticos de teatro (à
exceção de Mariângela Alves de Lima, do Estado) torceram
o nariz para o texto de Adriana Falcão, a encenação
de João Falcão e a direção musical de Lenine
e não sentiram o cheiro de gênio que emanava das canções
de Chico Buarque e Edu Lobo em Cambaio.
A estrutura surpreendente da narrativa
os pegou no contrapé e seus colegas da música popular tentaram
salvar sua pele elevando às merecidas alturas o CD que saiu com
as canções do musical gravadas com arranjos de Chiquinho
de Moraes. Foi arranjada a desculpa de que essa nova roupagem revelava
a beleza que a de Lenine escondia, mas isso não é verdade.
Apenas a concepção
do espetáculo é uma e a do CD, outra - e ambas são
excelentes. Além disso, um crítico incapaz de perceber a
beleza de uma canção por causa de um arranjo equivocado equivale
a um cozinheiro que julgue o sabor de um bolo confeitado não pelo
recheio, mas pelo glacê.
Perseguição - Infelizmente,
o problema fica mais embaixo. Jorge Luís Borges, vítima ele
mesmo de perseguição política por seus críticos
desafetos, já havia diagnosticado que a crítica é
má por julgar a partir de suas próprias idiossincrasias,
e não dos valores dos escritores comentados. Isso serve para explicar
o silêncio com que se tenta enterrar Memórias do Esquecimento:
se o autor foi implacável com os esbirros da ditadura, também
o foi com seus companheiros de militância.
A patrulha ideológica quase
soterrou a obra do poeta alagoano Jorge de Lima. Católico fervoroso,
escreveu um poema definitivo da literatura brasileira no século
20, A Invenção de Orfeu. A crítica atéia, intolerante
com sua convicção religiosa, tentou identificá-lo
apenas como um autor folclórico, que escreveu Essa Nêga
Fulô e Inverno. Quando, enfim, a qualidade excepcional
de seu poema-livro foi reconhecida, não era de todo tarde, mas Jorge
era morto.
Indigência - Será
preciso encontrar outra motivação para a indigência
crítica sobre o romance de Eustáquio Gomes. Neste caso, o
autor, um mineirinho quieto e desenturmado, não participa dos congressos
literários, não dá cursos em universidade (embora
trabalhe numa) nem pertence a uma escola literária, ou seja, está
fora das patotas.
Isso também ocorreu com
Augusto dos Anjos. O mestre-escola paraibano esquisitão e sem amigos
passou pelo planeta da vaidade dos escritores cariocas como um cometa exótico.
Seu cadáver de tísico foi sepultado juntamente com sua obra
única, e genial, Eu. O livro foi exumado e recuperado pelo leitor
comum, que o consagrou. Aí, apareceram os críticos. E em
tal número que hoje Augusto, que nunca pertenceu a escola nenhuma,
virou tema especializado: cresce a cada dia o número dos angelófilos.
Em medida menor, pode-se dizer
que algo de bastante semelhante ao que ocorreu com Jorge de Lima e Augusto
dos Anjos repetiu-se com Vinicius de Moraes. Como o alagoano, o carioca
venerava os clássicos, fazendo os melhores sonetos camonianos do
português desde o caolho fundador. Pouco afeito às libertinagens
formais que a patota modernista exigiria para aceitá-lo em sua grei,
o poeta maior decidiu fantasiar-se de "poetinha", para que ninguém
viesse lhe cobrar o pecado mortal de escrever letras para sambas. Felizmente
para o leitor, as verdadeiras dimensões de sua obra poética
estão sendo reconhecidas agora. Louvado seja, pois! Amém,
aleluia, nós todos!
O Estado de S. Paulo, 2 de setembro
de 2001 |