Provincianos em São
Paulo
eram vanguarda
Miguel de Almeida
É mesmo inacreditável
o que acontecia no Brasil antes da era moderna. Em especial, nos rincões:
Delmiro Gouveia querendo instalar uma indústria no sertão
alagoano; os jovens intelectuais da Padaria Espiritual, no Ceará;
o enlouquecimento de Souzândrade, no Maranhão; a ópera,
em Manaus. Agora é a vez de Eustaquio Gomes, escritor, aparecer
com o livro Os Rapazes d’A Onda e Outros Rapazes — um ensaio sobre
o meio literário de Campinas, cidade próxima a São
Paulo, no começo do século. O flagra inédito na província
vai mostrar embates entre conservadores e vanguardistas, ditos futuristas.
Eustáquio Gomes recupera
e coloca de pé personagens obscuros da província, nomes como
Apolônio Hilst (pai da escritora Hilda Hilst), Aristides Monteiro,
Hildebrando Siqueira, Victor Caruso e outros. Os embates — digamos duelos
— se davam nos jornais A Onda e Gazeta de Campinas — lançados, ambos,
em primeiro de maio de 1921. Como tudo naquela época, tinham ligações
enviesadas com o PRP, partido da oligarquia cafeeira.
Note-se que um ano antes da Semana
de Arte Moderna, em fevereiro de 1921, os dois jornais abrigavam discussões
entre o novo (o futurismo italiano de Marinetti) e o velho (o parnaso de
Bilac e turma). Incrível ainda é a lembrança de que
Campinas abrigou a segunda exposição de arte moderna da América
Latina (a primeira foi em São Paulo), a de Lasar Segall, em junho
de 1913 — resultado do mecenato cafeeiro nas modernas artes brasileiras.
O ensaio de Eustáquio Gomes
é para ser lido de uma sentada — afinal, são pouco mais de
150 páginas. O ensaísta reanima figuras obscuras que se apaixonaram
pela literatura e a ela deram suas vidas. Na distância de uma província,
encontramos o início da industrialização, um pequeno
núcleo cinematográfico, o amor à máquina veloz
e muitas idéias curiosas. É o caso de Apolônio Hilst,
um fazendeiro de Jaú, cafeicultor, que passou metade de seus 70
anos vagando por sanatórios, e que viu no aviador João Ribeiro
de Barros um poeta do ar. Escreve Eustáquio: “Não tem obra
escrita, mas seus arabescos no ar são elevados por Apolônio
à categoria estética, o que afinal é obtido alargando-se
ao máximo o sentido semântico da conquista aviatória”.
E temos, entre outras coisas, um quase haikai de Miguel Cione, um belo
trabalho: “Plúmbeo céu holandês /dia triste e chuvoso
/ à mente vem-me a história: Era uma vez / uns olhos...
e um perfume capitoso”.
A província vive também
o racha sofrido pelo modernismo: a turma do pau-brasil e o verde-amarelo.
O poeta campineiro Hildebrando Siqueira termina enlaçado pelas idéias
integralistas de Plínio Salgado, é preso e perde o emprego.
O rincão registra ainda briga metropolitana de Monteiro Lobato e
os modernistas, representado por Mário de Andrade. É tudo
história, história de vidas, sonhos e literatura. Justamente
tudo que interessa.
O Globo, 9 de fevereiro de 1992 |