Caro Diário
Alvaro Costa e Silva
O longo trecho ao lado justifica-se
para que se tenha uma amostra da matéria de que é feito Viagem
ao centro do dia: um diário. Um livro cuja edição
é um ato de ousadia. No Brasil, não há tradição
de se publicar diários íntimos, podendo-se contar nos dedos
os exemplos mais conhecidos. Parece que nossos escritores não são
dados a esse tipo de anotações, e se o são, não
as querem divulgadas. Dizer que, na Argentina, acabam de sair 1.600 páginas
dos diários de Bioy Casares sobre a amizade dele com Borges...
Trata-se de livro estranho, fascinante,
deslocado e belo, apresentando mais histórias de fracasso que de
sucesso. Um escritor que, em suas divagações, admite não
ter chegado lá e, por isso, resolve publicar o diário em
vida. E aí, sim, consegue chegar lá.
Para dar forma definitiva a pilhas
de cadernos e disquetes, Eustáquio Gomes trabalhou obsessivamente
em cima do material que compreende os anos de 1972 a 2005. Não só
reviu como reduziu a um quinto o volume bruto. Mesmo assim são quase
500 páginas que, ao contrário do clichê, não
devem ser lidas numa sentada. É preciso avançar aos poucos,
para delas extrair-se a análise clínica de uma metamorfose.
O crítico Alcir Pécora
filia a persona que surge dos diários à linhagem dos burocratas
líricos: o amanuense Belmiro, K., Akaki Akakievitch, Bouvard e Pécuchet,
e Bartleby. Comparação perfeita, sobretudo com os personagens
de Cyro dos Anjos e Melville, os quais sequer são citados mas estão
ali em comunhão. Para compensar essas ausências, autores que
cultivaram o gênero aparecem amiúde: Kafka, Amiel, Papini,
Sartre, Virginia Woolf, Pavese, Camus, Sylvia Plath, Gombrowickz, o brasileiro
Lúcio Cardoso. Há no mínimo uma página de comentários
para cada um, o que transforma o volume numa espécie de guia aos
não-iniciados, um diário sobre diários. Mas não
só isso. Em cada entrada com dia, mês e ano, transparece a
paixão pela literatura. São incontáveis os livros
e escritores mencionados, além de episódios da chamada vida
literária. Contudo, não há vaidade, praga do gênero.
Ao contrário, conta-se o esforço de um jovem de província
para tornar-se escritor.
Quando lhe fizeram a barbeiragem
nos cabelos, Eustáquio Gomes tinha publicado poesia, contos, ensaios,
os romances Jonas Brau e A febre amorosa. Depois, seguiu-se mais um romance,
O mapa da Áustria. Apesar da fraca repercussão de público,
suas obras tiveram boa aceitação crítica.
Não é, portanto,
um zero à esquerda. Mas se sente um escritor de província,
burocrata preso aos afazeres da Unicamp. Um Robert Walser de Campinas,
para lembrar o escritor suíço que muitas vezes aparece em
Viagem ao centro do dia. Walser - como Robert Musil, Kafka, Fernando Pessoa
- é um dos autores-fetiche de Enrique Vila-Matas, que faz deles
elenco e enredo dos notáveis Bartleby e companhia e Mal de Montano.
Os diários de Eustáquio Gomes o inserem nessa turma.
Jornal do Brasil, “Idéias”,
11/08/2007
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