Uma vida em cadernos
Geraldo Galvão Ferraz
Sempre foi moda os escritores e
pensadores escreverem diários. Hoje, todo mundo escreve seu blog
ou usa scrapbooks. Mas o charme dos diários não morre, tanto
que eles continuam a ser escritos, guardando sobretudo o seu caráter
secreto, de diálogo livre do autor consigo mesmo. Eustáquio
Gomes, um escritor mineiro nascido em 1952, autor de livros como o folhetim
Jonas Blau (1986) e o romance A febre amorosa (1984), que mereciam melhor
sorte junto a leitores e editores, é o autor de Viagem ao centro
do dia - um diário. Ele cobre as anotações em cadernos,
de 1972 a 2005, com a vida do rapaz de 20 anos, louco para escrever um
romance enquanto trabalha num jornal interiorano e depois na assessoria
de uma fábrica automotiva, até sobre o homem cinqüentão,
que apesar de muitas desilusões quanto à sua utopia literária,
não esmorece no seu esforço de produzir uma obra. Embora
suas forças sejam minadas por um trabalho de assessor na Unicamp,
promovendo reitores e outras autoridades que despreza.
Ele coloca como epígrafe
um quase truísmo de José Saramago: "Ninguém escreve
um diário para dizer quem é." Mas nas páginas de Viagem...
há muita confissão pessoal sobretudo quando se trata de pequenas
conquistas - a compra do primeiro carro e a luta para começar a
dirigir já na maturidade, por exemplo - e das decepções
com as recusas dos seus livros junto às editoras.
Na orelha, o professor e crítico
Alcir Pécora liga o diário de Eustáquio Gomes à
"linhagem literária dos burocratas líricos", que exemplifica
com o personagem de O amanuense Belmiro, criação de Cyro
dos Anjos. Eustáquio vive, como Belmiro, o drama de usar seu talento
com as palavras para ser um funcionário da escrita. Além
de compartilhar, com Belmiro, uma hipocondria que corre junto à
sua preocupação com a passagem dos anos que lhe trazem males,
mas não o reconhecimento para sua obra.
Contudo, o que em Belmiro deságua
numa certa resignação, aqui temos um lutador obstinado. Fraqueja
em momentos de muita amargura, mas sempre emerge com um novo projeto. É
pena que, como no misto de diário e ficção de Marques
Rebelo, O espelho partido, o humor não seja tão aparente.
Pois quando Eustáquio Gomes relata os encontros com poderosos e
intelectuais conhecidos, sempre acerta com farpas justas e divertidas.
E, no conjunto, mostra-se um escritor sensível e competente, de
belo estilo nesses tempos de agrafia galopante. Vale a pena ler esse diário
e reviver a atenção para seus outros livros.
Revista Cult, Setembro de 2007
|