Crônicas e diários
em um só enredo
Paisagem com Neblina... e Viagem
ao Centro do Dia articulam-se no cuidado com o artesanato da palavra
José Maria Mayrink
São histórias que
se completam. Crônicas no primeiro título, um diário
no segundo, essas páginas de Eustáquio Gomes somam-se no
tempo e nas saudades desse mineiro exilado em Campinas que, cerca de 40
anos depois, repassa travessuras da infância em Paisagem com Neblina
e Buldôzeres ao Fundo (Geração Editorial) e registra
reflexões da maturidade em Viagem ao Centro do Dia (A Girafa) como
seqüência de um enredo só.
Jornalista de profissão,
escritor nos intervalos da assessoria de imprensa da Unicamp, Eustáquio
Gomes cultiva o amor pela pureza do estilo e da língua com a dedicação
de um autor aplicado. Coisa de vocação, como se vê
pelas lembranças do seminário em Luz, cidade vizinha de sua
pequena Campo Alegre, no oeste de Minas Gerais. O bibliotecário
que furtou um Quincas Borba para ler e reler Machado de Assis durante as
férias mergulhou cedo numa literatura que os padres censuravam.
A começar pelo bispo, o
poeta parnasiano d. Belchior Neto, que cortou relações literárias
com o aluno, ao descobrir que ele cultuava a obra de Drummond e Manuel
Bandeira, esses “modernistas que desconhecem a rima e maltratam a sintaxe”.
Pecado imperdoável para quem disputava com os colegas a beleza das
palavras. Pindorama, balaústre, alabastro ou hierarquia, o que soava
mais bonito? As rezas e os estudos do adolescente que, para desgosto do
pai devoto, abandonaria logo o sonho do sacerdócio, medeiam em Paisagem
com Neblina inocentes brincadeiras de um menino da roça. “Que espécie
de bicho é uma mulher nua?” Tudo biográfico, o autor narra,
com poesia e graça, o sucesso de Telma no papel de Iracema, a virgem
dos lábios de mel do romance de José de Alencar, num palco
improvisado entre folhas de buritis.
Dividido em quatro partes e 40
capítulos - crônicas ou cromos, como define o autor - o livro
culmina com “A Viagem de Volta”, relato emocionado e emocionante do reencontro
com Campo Alegre, a terra natal.
Eustáquio Gomes revê
a Casa Rocha de “armarinho, tecidos, conveniências em geral”, abraça
o professor Tarciso e faz José Maria, o diretor da escola, abrir
a sala de aulas onde se sentou durante quatro anos. As onze páginas
dessa revisita ao passado desautorizam a epígrafe de Schopenhauer,
para quem “só o presente existe”.
De 1° de julho de 1972 a 30
de novembro de 2005, as 462 páginas de Viagem ao Centro do Dia percorrem
“um arco de tempo que vai dos 19 aos 53 anos”, período que marca
a vida profissional de Eustáquio Gomes na redação
de jornal e na assessoria da universidade, empregos que lhe deram oportunidade,
incentivo e gosto para se dedicar à vida literária, sua paixão
maior. Fruto disso são os 13 títulos já publicados,
numa variada gama de poesias, ensaios, biografias e romances.
Diário de datas esparsas,
Viagem ao Centro do Dia documenta fatos importantes sem o empenho e o rigor
de um cronista historiador. O 11 de setembro de 2001, por exemplo, “o dia
em que o mundo parou”, ganha apenas cinco linhas entre reflexões
mais extensas sobre a atividade das letras, preocupação recorrente
do autor. Mais densos são, dois meses depois, os parágrafos
que, entre 27 e 29 de dezembro, registram a catástrofe dos tsunamis,
em cidades costeiras da Ásia.
Em sua paixão pela literatura,
Eustáquio Gomes coleciona admiráveis e divertidas revelações
sobre escritores brasileiros de suas relações. Apresentou-se
a Pedro Nava nos jardins da Praça Paris, quando morou no Rio, serviu
de cicerone a Fernando Sabino numa passagem dele pela Unicamp e conviveu
com Hilda Hilst em Campinas. Desses contatos ficaram diálogos e
observações notáveis que um bom repórter não
deixaria de lado.
Fernando Sabino, por exemplo, se
interessou pelo trabalho do assessor de imprensa e, ao saber que o expediente
lhe deixava “apenas” duas horas livres para escrever, deu-lhe um conselho
de quem era do ramo. “Duas horas são o suficiente”. Contanto que
- e aí entra a prudente ponderação de um mineiro -
o emprego garanta um bom salário.
Eustáquio Gomes se comporta
como aluno e aprendiz quando se refere à obra e ao estilo de escritores
de sua predileção. Para quem estréia na carreira,
são lições úteis e proveitosas as informações
do diário sobre a dura via-sacra que os jovens autores enfrentam
para publicar seus primeiros livros. “A Record, este ano só publicou
um autor brasileiro novo”, anota o ainda jovem memorialista no dia 10 de
dezembro de 1993, após constatar que nas principais editoras havia
“não centenas, mas milhares de originais esperando leitura, sem
chance à vista”.
Dificuldades à parte, Eustáquio
Gomes tem do que se gabar. Seu romance A Febre Amorosa, que Luiz Fernando
Emediato publicou pela Geração como “um clássico do
underground”, mereceu uma resenha com elogios do crítico Wilson
Martins e foi traduzido para o russo. Divertida a reação
do autor tentando decifrar seu nome e o título do livro nos caracteres
cirílicos na edição do Institut Soitologii.
O Estado de S. Paulo – Caderno
“Cultura” – 16/12/2007
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