VIAGEM AO CENTRO DO DIA
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A boa semente
 


Paulo Franchetti


 


Escrevia há trinta anos o diário. Agora, selecionava o que poderia reunir em livro.(1) Intercalou a história do modelo do gênero, que passara a vida angustiado por não ter uma obra literária e morreu sem saber que o consagraria a coisa menos, a obsessão da página quotidiana, o ensaio privado, dirigido a um leitor cancelável a cada momento difícil, pela própria natureza do texto.

Depois revelou o seu empenho: buscar o centro do dia. O diário era a forma de o descobrir. Os acontecimentos caóticos, o corre-corre, a lista das frustrações e dos tropeços, as idéias que atravessavam o cérebro, com milhares de outras, num segundo, antes de afundar no nada. No recanto da mesa, com os velhos livros e a proteção das rotinas, podia repassar calmamente cada pequena fração do intervalo de vida, em busca do momento feliz ou infeliz que resgatasse alguma ordem, compondo um desenho inteligível.

Nem sempre acontecia logo. Às vezes, somente no final do inventário, como um ímã reorganizando os pregos soltos na caixa de ferramentas, o sentido emergia. Uma segunda narrativa, então – uma vez que a coerência era uma conquista, e a edição tudo poderia refazer, caso chegasse a hora de o leitor ser admitido na câmara secreta –, redimensionava o mosaico anterior, hierarquizando e selecionando os fatos no bloco bruto dos acasos.

Era, portanto, uma busca obscura de Deus. Uma indagação pela Providência. Ou, pelo menos, um ensaio de psicanálise bastarda, uma cântico ao deus desconhecido e aos poderes balsâmicos da ordem.

Todas as noites, a busca de um centro. O dia esperava por aquele momento para se fechar, como uma noz, deslizando a seguir para o fundo da caixa de provisões. Havia talvez, por isso, um gosto perverso de avareza na empreitada. Era preciso não só ordenar, mas acumular o produto, para uso futuro. Se não, qual o sentido da escrita? Ou de manter o escrito? Mas havia também alguma outra coisa: uma obscura aposta na redenção coletiva.

Ao menos, foi o que comecei a imaginar, à medida que ele discorria.

Se fizesse sentido ao menos para um, parecia pensar, o mundo apareceria outro. Salvo. De alguma forma, a presença de Deus habitaria o que era caos, separaria, naquele minúsculo intervalo da eternidade, a luz das trevas. A queda, nesse caso, era apenas a cedência ao sono: o intervalo entre um e outro momento de luz garantia o recomeço, a ressurreição para a nova conquista do sentido, que não transitava de um dia para outro dia. Se o fizesse, seria preciso esperar pelo fechamento, pelo momento da morte, para encontrar o centro. Não era uma possibilidade. Apenas as personagens de ficção tinham essa grandeza, a de uma vida completa, cujo significado – ou cuja ausência de significado (casos mais pungentes) – se revelava ao leitor no silêncio final. Ou, pelo menos, ficava vibrando como possibilidade, sem que se pudesse de fato decidir.

Para quem fala da realidade e da própria vida, e tem consigo um pacto de verdade (com limites, é certo, mas ainda assim um pacto), buscar adivinhar hoje o sentido de amanhã é cavar a cova do silêncio prematuro. A postulação do sentido no menor não resiste à ameaça do adiamento da busca, à postergação do discurso até que o quadro esteja completo.

Ouvia-o apenas dar exemplos de descobertas, enquanto tentava traduzir o que as suas mãos pareciam desenhar, ao percorrendo a superfície do corpo, puxando o lábio inferior, agarrando a pele do pescoço, tamborilando sobre as pernas. 

Continuei a seguir o deslizar da idéia: se fosse preciso esperar pelo sentido pronto para escrever, qual seria a razão dessa escrita e desse discurso, que se erguiam com tal espírito redentor? Bastaria o silêncio dos místicos ou o exemplo dos santos.

Ele ainda falou um pouco mais. Fiz um gesto brusco, quando me surpreendi longe da conversa, arrastado pelo desenrolar das sugestões. Ele o entendeu como sinal de fim do encontro e contraiu o corpo, como se fosse levantar-se e sair rapidamente pela porta.

Era sempre muito atento a tudo, pois buscava, a cada minuto, o centro fugitivo e ignorado do dia em curso. 

Fiz ver que não era nada, apenas um gesto. Ainda conversamos cerca de meia hora. Não me lembro sobre o quê.

Talvez ali, naquele segmento final de diálogo desatento, tivesse acontecido algo que pudesse ser tomado como o centro desse dia. Se aconteceu, não dei por isso. Para mim, pensei naquela noite, ainda sob o efeito da conversa, aquele dia juntou-se a tantos outros sobre os quais não pairou o espírito de Deus. Embora nele alguma coisa diferente de fato tivesse acontecido.

A verdade é que foi bom encontrar um crente. E também é verdade que, passado algum tempo, confortou-me a idéia, nas horas mortas da noite, de que ele talvez estivesse, enquanto eu olhava para um livro ou terminava de ver um filme na tv, lutando para redimir um dia mais. Que ele estava trabalhando ainda para salvar-se e que, ao fazê-lo, de alguma forma absurda, também se esforçava um pouco por todos nós.

[1] Eustáquio Gomes. Viagem ao centro do dia. São Paulo: A Girafa, no prelo.

Cronópios (http://www.cronopios.com.br), 22/2/2007