O burocrata lírico
Alcir Pécora
A persona criada pelos cadernos
de diários de Eustáquio Gomes, redigidos de 1972 a 2005,
se filia à linhagem literária dos burocratas líricos,
da qual, no Brasil, o amanuense Belmiro é o mais perfeito modelo,
sem que sintomaticamente seja citado neles uma só vez.
Se fosse usar um vocabulário
caro aos diários, diria que Belmiro é o seu êmulo recalcado.
Na literatura internacional, essa mesma escola de pequenos funcionários
relaciona personagens definitivos como, exemplarmente, K., Akaki Akakievitch,
Bouvard e Pécuchet, Simon Tanner, e, ainda mais diretamente, o Bartleby,
de Herman Melville – outro êmulo perfeito não citado.
Mais diretamente, digo, pois Bartleby
não é apenas um pequeno funcionário, da classe dos
hipocondríacos, mas também um funcionário da escrita.
Exatamente como ocorre com a persona dos diários, cujo drama reside
nisto: a subalternidade de escrita que lhe paga o sustento, o ofício
escriturário que a obriga a mover a pena segundo a vontade dos superiores
– ou pior ainda, segundo as regras do controle burocrático imune
à vontade –, por algum desajuste imprevisto de temperamento, não
admite renunciar à grandeza potencial de uma escrita apenas sua,
intransferível, capaz de distingui-la da jornada anódina
de sua própria existência.
Os diários são o
lugar em que se inscreve esse desajuste, e também a aposta mais
alta de sua pena. Pois o que os diários apostam é que, circulando
rigorosamente à roda de sua própria mitologia, aferrados
a seu culto da insignificância, da pequenez e até do medíocre,
a escrita gire sobre si mesma, de um só golpe, transfigurada pelo
exercício perfeito de seu próprio desengano, e então
se revele extraordinária e única.
Longe dos diários que querem
proclamar a grandeza incompreendida de seu autor, sob a capa curta da modéstia
afetada, os de Eustáquio Gomes não querem senão descobrir
no seu ofício escrevente uma forma: uma que seja, ao mesmo tempo,
a forma fiel da vida miúda que pode viver, e a vida universal de
uma forma única, que captura com perfeito domínio estilístico
o esvaziamento medíocre. Sua persona, pequena embora, emula o salto
no vazio de toda grande literatura.
Texto de apresentação
do livro (1ª. Edição, A Girafa, 2007)
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