Viagem ao centro do dia
Roberto Romano
Para compensar o pesadelo Brasil,
mergulho em páginas lúcidas, verdadeiras e cruéis
de um escritor exímio. Trata-se de Eustáquio Gomes, no diário
Viagem ao centro do dia. De chofre, a antítese e inversão
de Celine (Voyage au bout de la nuit). O estilo tempera o ácido
do novelista francês, mas rasga os olhos do leitor com ironia mineira.
Eustáquio narra sem complacências, nada é perdoado
a ele mesmo nem aos que partilham os seus bons e péssimos instantes.
Cada átimo da biografia (dos 19 anos nossos dias) é coberto
por uma camada de fel, na qual se mescla densa humanidade.
As tristezas do emprego, as lides
universitárias, redações e editores, tudo é
descrito em tom singela. Cada página traz novos personagens graves,
caricatos, espirituosos, dignos de respeito ou repulsa. Por todos o narrador
mostra carinho, o que nele denuncia o hábito de Spinoza: não
rir nem chorar quando diante do humano, compreender. Temos uma coletânea
de vozes dissonantes, harmonizadas com perícia impar no teclado
de Eustáquio.
É possível notar,
no compasso das memórias capturadas em Viagem ao centro do dia,
a tensão entre a morte (no singular e no plural) e a esperança.
É como se a escrita operasse como sístole e diástole:
quando a vida ganha cores belas, bate a notícia do nada. Assim ocorre
com os seus genitores e amigos (Bernardo Caro surge em muitas páginas),
e com os anônimos acadêmicos presos às redes de influência
e fama, libertos pela sepultura.
Eustáquio Gomes nos presenteou
com O Mandarim, biografia de Zeferino Vaz, radiografia cáustica,
mas serena da Unicamp, viveiro de intelectuais privilegiados em tudo: da
força que gera ciências, técnicas, artes, aos mais
brutos procedimentos políticos. O quadro, naquele escrito,
é sinótico. O grande reitor dá sentido e visibilidade
às existências por ele dominadas.
Agora o foco se transfere: o mundo
espiritual das editoras, jornais, conselhos e gabinetes acadêmicos,
serviços e servidores, tudo se oferece na perspectiva de Eustáquio.
A pequenez do mundo universitário é relativizada pela cultura
do autor. Quando a tolice dos burocratas acadêmicos chega ao insuportável,
surgem reflexões estéticas, morais, históricas, políticas.
Todas ensinam, dialogam, pacificam. Renascem citações delicadas
e precisas de Camus, Kafka, Sartre, Machado de Assis. Eustáquio
abre uma fenda que permite vislumbrar melhor aqueles espíritos,
e o seu.
Nos Dircursos de Metafísica,
Leibniz exibe a perspectiva universal. O ser divino “gira por assim dizer
para todos os lados (…) olha todas as facetas do mundo de todas as maneiras
possíveis, pois não existe elo que escape à sua onisciência”.
O criador de todos os indivíduos enxerga o universo “não
apenas como eles o percebem, mas ainda de modo totalmente diverso ao deles
(…) torna o que é particular para um, público para todos”.
Quando observamos a cidade da cultura,
vemos a confusão das vaidades, das tolices, das mentes geniais,
das medíocres, das almas grandes e nanicas. Leibniz ajuda: “a mesma
urbe, olhada de lados diferentes parece ser outra, como se multiplicada
em perspectiva; também ocorre que numa multiplicidade infinita de
substâncias simples, existem tantos universos diferentes, os quais,
no entanto, são apenas perspectivas de um só universo, segundo
os diferentes pontos de vista de cada mônada” (Monadologia,§57).
Biografias refletem os que rodeiam o escritor. E os impelem rumo aos olhos
públicos. Nelas o autor espelha, em anamorfose, a sua própria
figura. Mais fino o exame, o estilo, transparentes os personagens, surge
o medo devido à maestria, à exatidão. É como
se o olhar divino invadisse, com as lentes do escritor, o nosso imo. Quem
abre o livro de Eustáquio Gomes sofre um pânico deste tipo.
Mas depois das últimas (?) linhas, o mundo é percebido com
maior translucidez, mais encanto. Obrigado, Eustáquio.
Correio Popular, Campinas, 2007
Gazeta do Oeste, Divinópolis
(MG), 5/12/2007
http://www.ucho.info/Colunistas/Romano/viagem_centrododia.htm
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