Como salvar a Argentina



Eustáquio Gomes



Participei outro dia, como debatedor, de uma discussão sobre os "preconceitos e crendices" que rondam a matemática. Minha presença ali parecia inexplicável: nunca houve pior aluno de matemática do que eu. Cheguei a suspeitar que o convite do professor Ezequiel (Theodoro da Silva) me fora feito em homenagem à segunda época que levei em estatística no segundo ano de faculdade. Como diabo o Ezequiel descobrira isso?

Depois vi sentido na coisa: eu estava ali pela mesma razão que um desdentado vai ao dentista e, antigamente, um incréu ia ao fogo da Inquisição. Se calhar, o desdentado sai cheio de dentes e o incréu, acossado, começa a ter exultações religiosas. Foi o que aconteceu comigo. Durante o debate, influenciado pelo calor humano da platéia e pela doçura da exposição do professor Sérgio Lorenzato, comecei a ter brilhantes idéias matemáticas e geopolíticas. 

Enquanto o conferencista servia-se de mim para fazer girar diante do público um objeto de acrílico recheado de água, que ele dizia ser o Teorema de Pitágoras (quando eu imaginava fosse uma estrela de quatro pontas), eu refletia seriamente na grave questão argentina e de como resolvê-la mediante uma elucubração que me acometeu naquele ambiente saturado de boas intenções matemáticas. 

Lembram-se das famosas polonetas? Minha solução baseava-se no seguinte cálculo. A Polônia é um dos raros países que devem ao Brasil. A dívida deve andar pelos dois bilhões de dólares. Não há perspectiva de que seja paga. Aliás, para equilibrar suas contas, a Polônia está pedindo exatamente dois bilhões de dólares ao FMI. Ora, dois bilhões de dólares fariam a festa da Argentina. Com dois bilhões de dólares a Argentina se manteria à tona por mais algum tempo, o Mercosul voltaria a ser o que era (isto é, coisa pouca) e o dólar baixaria a níveis toleráveis. Como o Brasil vai receber 15 bilhões do FMI, não custava nada ceder dois bilhões à Argentina. Não perderíamos um tostão. Vou explicar porquê.

Com os dois bilhões cedidos pelo Brasil, a Argentina pagaria sua dívida imediata com o FMI e sairia do sufoco. O FMI pegaria esses dois bilhões e os repassaria à Polônia, sob a condição de que esta saldasse sua dívida com o Brasil. A Polônia, mesmo aborrecida, se veria forçada a fazê-lo. E assim o dinheiro voltaria ao Brasil sem nem mesmo perder o elástico dos pacotes, para completar o caixa dos 15 bi, assegurar o câmbio e a eleição do ano que vem. Ninguém desembolsaria coisa alguma e todo mundo sairia ganhando. 

Mas a história não termina aí. É evidente que a Argentina, com a água pelo queixo, passaria a fazer o papel da Polônia. Não daria o menor sinal de querer pagar o Brasil. Nós começaríamos ameaçando com retaliações comerciais. O ministro Cavallo voltaria a mostrar todo o seu imenso desdém para conosco. "Lá vem o elefante outra vez, com a sua tromba", diria ele. O ministro Prattini, escalado pelo governo brasileiro, perderia as estribeiras. E lançaria um repto: "Como confiar num homem que tem narinas de cadáver?". Os argentinos se ofendem, há conflitos civis na fronteira, um jogo da Libertadores termina em pancadaria.

E o Brasil invade a Argentina. O exército deles, debilitado, nem chega a deixar os quartéis. Os soldos estão atrasados, não há comida nas despensas. As tropas brasileiras entram em Buenos Aires como se estivessem a passeio. E até usam de boas maneiras para fazer alguns prisioneiros. Tomam a Casa Rosada, a bolsa de valores, o Banco Central, a Rádio Mitre e o jornal Clarín. Como a seleção argentina está concentrada no estádio do Boca (no dia seguinte haveria um jogo das Eliminatórias) um destacamento é enviado para lá. O time é rendido e o comandante brasileiro, depois de elogiar Di Stéfano e Maradona, sem colocá-los nem acima nem abaixo de Garrincha e Pelé, anuncia que agora somos um país só, sob a égide do Cruzeiro do Sul, do samba e do tango, da malandragem e da milonga, mas sobretudo do futebol. E conclui com uma ordem dita com a doçura do professor Lorenzato: 

— Agora façam o favor de vestir este jogo de camisas amarelas.

Os argentinos relutam, mas acabam obedecendo sob a mira de metralhadoras. E o comandante declara que, para o bem de todos, fica também resolvido o problema da seleção do Felipão.