Clarice aos 76


Eustáquio Gomes



Clarice Lispector faria 76 anos em dezembro se não houvesse passado ao mundo do encantamento em 1977 ("as pessoas não morrem, ficam encantadas", disse Guimarães Rosa) num hospital do Rio de Janeiro. Se viva, seria talvez o maior escritor brasileiro em atividade. Imagino a viva e vou visitá la. Não vou só: tenho a companhia de Berta Waldman, que escreveu sobre ela um livrinho luminoso (Clarice, Brasiliense, 1993) e cujo rosto se assemelha ao de Clarice quando jovem. Mal a porta se abre, mostro lhe o gravador e pergunto se não se incomoda.

— Detesto entrevistas, diz, mas entrem. Sou uma mulher simples. É verdade que também sou um pouquinho sofisticada. Muito de camponesa e de estrela do céu. Eu não tenho enredo.

— Mas sabe coisas e isso nos interessa.

— Estão enganados, eu sei de muito pouco. Só tenho a meu favor tudo o que não sei e (por ser um campo virgem) está livre de preconceitos. Tudo o que não sei é a minha parte maior e melhor: é a minha largueza. Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade.

— Isso tem a ver com escrever?

— Tem a ver com a minha liberdade. Minha liberdade é escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo.

— Sempre pensou em escrever?

— Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. Foi essa que escolhi.

— Escrever foi então uma imposição da infância?

— Na infância, eu tive um cotidiano mágico. Só relembrando de uma vez, com toda a violência, é que a gente termina o que a infância sofrida nos deu.

— A infância lhe dá nostalgia?

— Não ter nascido bicho é a minha secreta nostalgia. Os bichos me fantasticam. Eles são o tempo que não se conta.

— E quanto à música?

— A música é tão importante para mim que, quando a ouço, é como se eu fosse o intérprete. Tenho através dos outros uma voz belíssima. E não existe ninguém que me toque melhor a flauta doce. 

— Por que escreve?

— Escrevo sobretudo porque a vida é mortal mesmo antes de uma pessoa morrer. Escrevo para saber por que nasci.

— E também para saber como morrer?

— Eu sei morrer. Morro desde pequena. E dói, mas a gente finge que não dói. Agora vou morrer um pouquinho. Estou tão precisada.

— Como se deve morrer?

— Deve ser uma muda explosão interna. O corpo não agüenta mais ser corpo. E, no entanto, eu vou morrer: há esta tensão como a de um arco prestes a disparar a flecha. Sei que vou atingir o alvo.
 Disse lhe que era uma sorte ter mais respostas que perguntas.

— Se uma pessoa se perguntar durante meia hora a palavra "eu", disse, essa pessoa esquece quem é. É mais seguro não fazer jamais perguntas, porque nunca se atinge o âmago de uma resposta. E porque a resposta traz em outra pergunta.

— Tudo acaba?

— Tudo acaba, mas o que eu escrevo continua. O que é bom, muito bom. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.