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Na
torre de Jung
Eustáquio Gomes
Perturbado por uma série de sonhos em que entram talibãs
e índias quíchuas, fui procurar Carl Gustav Jung, o discípulo
rebelado de Freud. Passa parte do ano numa torre que mandou construir à
margem de um lago de Zurique, no meio da floresta, e foi lá que
o encontrei. A torre tem aspecto medieval. Não há luz elétrica
nem telefone. O próprio Jung tira água do poço, racha
lenha e cozinha. Tem 86 anos e vai morrer em breve, mas logo fica claro
que para ele isso será como um mergulho no mito, e talvez não
o último.
Por que veio morar aqui?
Aqui vivo em harmonia com a natureza. Os trabalhos simples tornam o homem
simples, e é muito difícil ser simples. Além
disso, idéias emergem, do fundo dos séculos, antecipando
portanto um futuro longínquo. Aqui criação e jogo
se aproximam.
Perguntei lhe por que os sonhos eram tão importantes para ele. Respondeu:
Os sonhos são como a lava ardente e líquida a partir da
qual se cristaliza a rocha que se deve talhar.
O senhor é um cientista ou um cultor de mitos?
Certo dia, escrevendo a respeito de minhas fantasias, perguntei a mim
mesmo: "Mas afinal o que estou fazendo? Certamente tudo isso nada tem a
ver com ciência. Então do que se trata?" Uma voz em mim disse:
"O que fazes é arte".
Toquei no assunto que marcou sua biografia:
Foi isso que o separou de Freud?
Tenho ainda uma viva lembrança de Freud me dizendo: "Meu caro
Jung, prometa me nunca abandonar a teoria sexual. Devemos fazer dela um
dogma, um baluarte inabalável. Um tanto espantado, perguntei lhe:
"Um baluarte contra o quê?" Ele respondeu: "Contra a onda de lodo
do... ocultismo".
Como o senhor reagiu?
Não pude concordar, é claro. Esse choque feriu o cerne
de nossa amizade. Freud parecia entender por "ocultismo" tudo o que a filosofia
e a religião, assim como a parapsicologia nascente, diziam da alma.
Em suma, a luta do mito contra a razão.
A razão nos impõe limites muito estreitos e apenas nos
convida a viver o conhecido, como se conhecêssemos a verdadeira extensão
da vida. Na realidade, nossa vida ultrapassa em muito os limites de nossa
consciência e, sem que saibamos, a vida do inconsciente acompanha
nossa existência. Quanto maior for o domínio da razão
crítica, tanto mais nossa vida se empobrecerá. E quanto mais
formos aptos a tornar consciente o que é mito, tanto maior será
a quantidade de vida que integraremos.
Quis saber quando exatamente ele havia tomado consciência disso.
Foi no início da segunda metade de minha vida que comecei o meu
confronto com o inconsciente, respondeu. Foi um trabalho que se estendeu
por longos anos e só depois de mais ou menos vinte anos cheguei
a compreender em linhas gerais os conteúdos de minhas fantasias.
Há vida após a morte?
Toda vida aspira à eternidade. O homem deve provar que fez
o possível para formar uma concepção ou uma imagem
da vida após a morte, ainda que seus esforços sejam confissão
de impotência. Quem não o fez, sofreu uma perda.
Por que uma perda?
Porque a instância interrogativa que fala nele é uma herança
muito antiga da humanidade, um arquétipo.
Por fim, uma pergunta síntese:
Que balanço o senhor faz de sua vida?
Não se fez de rogado,
embora tivesse todo o direito de mandar me às favas:
Sinto me espantado, decepcionado e satisfeito comigo. Sinto me triste,
acabrunhado, entusiasta. Sou tudo isso e não posso chegar a uma
soma, a um resultado final. Não tenho mesmo, para dizer a verdade,
nenhuma convicção definitiva a respeito do que quer que seja.
Sei apenas que nasci e que existo.
O fogo da lareira estava baixando, mas o braseiro crepitava e chiava. Jung
foi lá fora e voltou com três pequenas achas de madeira. Esperei
que o fogo voltasse a subir e despedi me dele. À saída, deu
me de presente um lindo livro autobiográfico Memórias,
Sonhos, Reflexões que desde então é um de meus livros
de cabeceira; e de onde, como quem colhe pequenas pepitas num rio largo,
extraí a fantasia dessa entrevista com o velho e doce Jung.
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