|
Um alegre finados
Eustáquio Gomes
Bruno Ribeiro, repórter de Metrópole, atravessava um dia
o Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro
(Bruno é carioca), quando se deixou pegar pela tristeza de ver tantas
fotos de pessoas mortas. Já estava quase na última aléia
do campo santo, pronto para entrar de volta na cidade turbulenta, quando
deu com um túmulo simples onde havia uma foto extraordinária.
Na plaquinha ovalada, o morto sorria de uma orelha a outra. O epitáfio
era de uma ironia avacalhada: ¨Morri, e daí?¨. Aquilo alterou
o humor de Bruno. E ele nunca mais encarou a morte com tanto respeito.
De fato, os cemitérios seriam lugares mais alegres se as pessoas,
antes de passarem desta para melhor, tratassem de cunhar um epitáfio
à altura de sua filosofia de vida. Como por desinteresse ou falta
de imaginação isso não acontece, as famílias
cuidam de suprir a lacuna mandando gravar na campa frases insossas que
não consolam os mortos nem melhoram o humor dos vivos.
Bastava uma sentença declarativa simples, mas sincera, para deter
o transeunte distraído e merecer dele, quem sabe, uma oração
ou quando menos uma palavra de simpatia.
Além de nos convencermos de que está ali alguém que
já pertenceu ao time dos vivos, conheceríamos um pouco de
sua vida, de seus sonhos ou de sua desilusão. Assim, diante de um
epitáfio curtinho como este — "Enfim, só" — saberíamos
que estamos diante de uma pessoa de poucas palavras e a quem devia incomodar
profundamente a companhia dos outros homens. Ou, se no lugar destas,
as palavras fossem outras — "Enfim magro", por exemplo —,
seria o bastante para sabermos que o cavalheiro (ou a dama) ali em repouso
viveu às turras com a balança e em geral foi derrotado por
ela.
Claro que os epitáfios hão de variar segundo a personalidade
e o temperamento de cada um. "Desculpe a poeira", por exemplo, é
uma frase que cairia muitíssimo bem numa pessoa que, em vida, foi
obcecada por limpeza. Alguém que morreu de cirrose (e que em vida
cansou de ouvir que a bebida o mataria aos poucos) poderia perfeitamente
sair se com esta: "Eu não estava mesmo com pressa".
Um mau pagador cuja vida foi provavelmente estragada pelas dívidas
deveria mandar escrever com alegria algo assim: "Adeus, credores" — mesmo
sabendo que alguém terá de saldá las por ele. Digamos
que alguém queira deixar uma última advertência a seus
inimigos; sugiro esta: "Vocês não perdem por esperar". E um
espírita que tenha enfrentado a incredulidade dos colegas: "Prometo
voltar para contar como é".
Mas há quem prefira, em vez da nota biográfica, deixar um
julgamento pessoal do mundo que ficou para trás. Um ecologista há
de desabafar com razão: "Gostei do cenário, mas os atores
são péssimos". Um economista de oposição não
deve perder a oportunidade de advertir mais uma vez contra as promessas
do governo, mandando gravar este alerta definitivo: "Não acreditem
em políticas de longo prazo; a longo prazo estarão todos
mortos".
Naturalmente haverá quem queira deixar algo que fique como uma lição
de vida. Para isso se prestam muito bem os bordões filosóficos.
O otimista dirá: "O pior já me aconteceu, agora as coisas
só podem melhorar". O niilista: "Se a morte é o sono eterno,
quem garante que a vida não é um sonho?". O espírito
confuso: "Agora que sei a resposta, esqueci qual é a pergunta".
O consolador: "Considerem que saí de férias não remuneradas".
O suicida: "A solução pode não ter sido a melhor,
mas vocês têm de admitir que meus problemas acabaram". O pragmático:
"Durante boa parte da vida pensei que o dinheiro fosse tudo; agora tenho
certeza". O biografável: "Como o silêncio enobrece, logo terei
uma excelente reputação".
Assim como a imprensa, o túmulo deve ser o campo da livre e sincera
expressão dos gêneros. "Espero que meu enterro tenha sido
um sucesso", é o que se lerá, com naturalidade, na campa
da emergente. No do anarquista, esta pérola machadiana: "Os vermes,
como os patrões, sugam mas pelo menos não me
obrigam a trabalhar para eles". No do liberal recalcitrante: "Se eu pudesse
recomeçar, trataria de cometer mais erros". E eis o que diria o
conformista: "É feliz quem já não precisa de dinheiro,
saúde ou sorte". E o inconformado, como num diálogo entre
tumbas: "Morto, mas absolutamente contra a vontade".
Cogitei mesmo, certa vez, de abrir um pequeno negócio de redação
de epitáfios. Vá que atraísse boa clientela, já
que nesse campo as idéias não abundam. Felizmente abandonei
o projeto, mas não antes de redigir o meu próprio dístico,
que espero venha a dourar a minha lápide. Este: "Cada cemitério
tem o Shakespeare que merece". |
|