Sufoco
Eustáquio Gomes
Altas horas de uma noite de 1970, eu descia a pé a rua José
Paulino, rapazinho ainda, quando alguém me chama da calçada
oposta. Era Wilson, um negro alto e gordote que eu conhecia de freqüentar
a sorveteria em que eu trabalhava como balconista. Vestia um blusão
de couro e atravessou a rua quando esperei por ele. Estávamos na
altura do antigo Colégio Coração de Jesus. Ninguém
na rua àquela hora. Peneirava um chuvisco fino.
— Tempo miserável esse, hein, disse Wilson.
Começamos a descer a rua juntos. Na porta do Centro de Saúde,
um mendigo dormia estendido na soleira. Wilson perguntou se era verdade
que eu escrevia poemas. Respondi que sim. Ouvira dizer que também
escrevia em latim e grego. Desmenti esse boato: no máximo sabia
umas declinações, uns prefixos.
— Seu irmão me disse que você aprendeu latim e grego na escola
de padres. E que escreve peças de teatro também.
— Não é bem assim, respondi.
Começou a me dar conselhos. Dizia que um poeta como eu não
devia trabalhar num bar. Respondi que era um trabalho temporário
e que precisava do dinheiro. Não me importava de servir casquinhas
e de carregar engradados para o depósito. Quando conhecesse gente
bem postada e voltasse a estudar, mudaria de emprego. Wilson disse que
tinha excelentes relações na cidade, e que me ajudaria. Disse
isto quando já subíamos a Delfino Cintra. Nessa altura passou
um caminhão sacolejando correntes.
— Quanto tempo ficou na escola de padres? perguntou.
— Barbaridade. Como era a vida lá?
— Boa, acho.
Wilson riu:
— Mas vocês já estavam todos crescidinhos. E todos ali, presos.
A conversa tomou um rumo inesperado. Ele quis saber como é que a
gente se arranjava. Fiz-me de desentendido e ele explicou desenhando curvas
no ar com as duas mãos: ¨Mulher¨. E respondeu ele próprio:
¨Já sei, apelavam pro prazer solitário¨. Admiti que
não havia outra maneira de resolver aquilo. Rimos juntos, ele desbocadamente,
eu meio sem jeito. Fomos atingidos pelos faróis de um Opala Cupê
e de dentro gritaram: ¨Ê, veados¨. Wilson virou-se
agressivamente e espetou o dedo médio para eles. Depois voltou-se
de novo para mim e amaciou a voz. Quis saber a freqüência dessas
práticas secretas. Calei-me. Não estava gostando do
modo como o crioulo falava. Naquele ponto a rua era escura e desolada.
Mais adiante havia um cemitério de automóveis. Ele insistia:
quantas vezes? diariamente? três, quatro vezes por semana? Aquilo
estava se tornando muito incômodo.
— Tá envergonhado por quê? Eu não sou bicha. Eu sou
tão homem quanto você. Vou na zona, pego mulher, tenho as
minhas transas. Por que está envergonhado?
— Não tou envergonhado.
— Sou homem e, olha, devia saber como sou conhecido no Itatinga. Pergunta
por mim na Paraguaia, na Otília. Você nem imagina até
que ponto eu sou homem. Não pode nem imaginar até que ponto
eu sou homem.
— Não tou dizendo nada, eu disse.
Desceu um segundo negro pela rampa que dá nos fundos do Colégio
Culto à Ciência e termina junto ao pontilhão. Não
percebi de onde ele apareceu. Era tão alto quanto Wilson, mas magro.
Tinha o rosto encovado e os olhos grandes e fundos.
— Que-que há, m’ermão? perguntou.
— Este seminarista pensa que eu não honro as minhas calças.
— Eu não disse nada, protestei.
— Ê, Wilson, calma.
— Calma coisa nenhuma. Vou estripar esse presbítero.
— Deixa disso, disse o outro. Basta ver se ele fica bonzinho e não
reage.
— Pois então vem aqui e baixa as calças dele.
O magro e alto aproximou-se. Wilson esperava como se escondesse um canivete
na manga. Antes que o tipo se aproximasse mais, tomei impulso e comecei
a correr. Meus sapatos faziam barulho no asfalto e eu me assustava com
o próprio rumor. Corri com todas as forças que pude, correndo
passei pelas sombras alongadas do cemitério de automóveis,
cruzei os baixos do pontilhão e continuei, subindo sempre, até
alcançar a avenida Andrade Neves. Lá me permiti olhar para
trás. Os dois continuavam lá embaixo, parados no mesmo
lugar. Agucei os ouvidos. Dobravam -se de rir. Sentindo o suor me empapar
o pescoço e vendo ao longe, pouco nitidamente, as luzes de um posto
de gasolina, sentei-me no meio-fio e não consegui segurar o choro. |