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Diário de uma
viagem ao sul
Eustáquio Gomes
Escrevo vendo pinheiros da janela deste quinto andar, Hotel Continental,
quarto 510. Acabo de voltar de um passeio ao longo da cidade. ¨Ao longo¨
é bem o termo: o casario não se organiza em torno de um núcleo,
de uma praça central, mas antes se espicha pelo dorso das encostas.
Portanto será impossível obter uma visão de conjunto,
a não ser que suba à torre da catedral de pedra. A catedral
é bonita, espigada e de linhas harmoniosas. Na perspectiva da avenida,
casas e chalés que parecem de brinquedo, com os frisos coloridos
da arquitetura teuta. Muitas flores, principalmente hortênsias, o
símbolo da cidade. Mas não se vê alemães. Isto
é Canela, tranqüilo recanto gaúcho.
Chegamos ontem por volta das 18h30, depois de hora e vinte de avião
e duas horas de ônibus por uma estrada sombreada de ambos os lados,
com campos azuis perdendo-se entre colinas. Era para termos chegado ao
meio-dia, mas houve um contratempo: com o atraso do avião da manhã
e a descoberta do motivo (uma pane do radar), minha filha recusa-se a embarcar.
Acho compreensível, é seu primeiro vôo. Portanto vamos
no vôo seguinte, com escala em Curitiba. Tampouco eu gosto de radares
quebrados, aliás não gosto nem mesmo de avião. Como
diz o sr. Chaves, nosso vizinho e amigo: ¨O avião é tão
seguro quanto um carro; a diferença é que lá em cima
não tem oficina¨.
Não há pedintes na cidade. O povo é corado, simples,
e evita olhar a gente nos olhos. No hotel, à noite, sorriem e asseguram
que não, não há crimes em Canela, podemos ir tranqüilamente
a qualquer lugar, a qualquer hora. Penso nos 650 homicídios anuais
de Campinas e sinto vergonha. Para ganhar a rua é preciso contornar
o prédio por uma estradinha lírica, de pedra, que serpeia
entre araucárias e gramados. Está escuro. A descida é
sinuosa mas agradável porque sente-se o ar fresco que vem dos pinheirais.
No entanto a gente da cidade reclama do calor: 35 graus esta tarde.
Lá adiante, descendo a pé rumo à cidade, encontramos
um animal esquisito caminhando pela calçada. Umas jovens que vêm
em sentido contrário o evitam cheias de medo. Creio que, como nós,
são de fora. À distância, vendo-o rebolar no calçamento,
penso que é um cãozinho, depois um tatu. Mas, chegando perto,
constatamos que é um porco-espinho. Mais alarmado que nós,
o bicho entra por uma rua lateral e desaparece na sombra.
Esta manhã, o tempo muda. Peneira um chuvisco fino e ondas densas
de neblina avançam entre as ramagens das araucárias. A temperatura
cai. Mesmo assim vou para a rua, desta vez sozinho, deixando minha filha
no hotel a estudar as transparências da apresentação
que fará num congresso, esta tarde. Não consigo compreender
nem mesmo o título de sua palestra: ¨Uma abordagem baseada em
mapas auto-organizáveis de Kohonen aplicada aos problemas de roteamento
de veículos¨. Pergunto-lhe quem é Kohonen. É um
gringo que faz mapas auto-organizáveis. E penso num conto policial
com este título: ¨Quem matou Kohonen?¨. Só assim
a coisa faria sentido para meus três neurônios.
No interior da catedral, vitrais varados de luz e duas grandes pinturas
com anjos, uma de cada lado do altar. Além de mim, só há
um homem sentado no último banco. É um negro de meia idade
que traz uma muleta. Quando passo por ele, vejo que murmura orações
de olhos fixos no Cristo. Em seguida entra um velhinho que vai direto ao
altar, acaricia a imagem da santa com a mão direita, senta-se um
minuto defronte ao sacrário e depois retira-se, boina branca na
mão esquerda, pela porta lateral. Quando vou deixando a nave, contra
toda a minha expectativa o devoto de muletas me estende o braço.
Julgo que quer me cumprimentar e por isso lhe aperto a mão. Mas
não: o que ele quer é ¨um adjutoriozinho¨. Diz que
vem de uma operação na perna. Eu peço desculpas porque
não trago nada na carteira, o que é verdade. Ele diz que
fica agradecido do mesmo jeito e volta a murmurar suas orações.
Enquanto me retiro, penso se o coloco ou não na categoria de pedinte.
Resolvo que não e a cidade continua intacta.
À noite, esparramado na cama do hotel, aguardo o jogo Brasil x Bolívia
com o velho fantasma da altitude pairando sobre as copas dos pinheiros
lá fora. Enquanto espero abro o livro-que-trouxe-para-ler-
na-viagem, um romance de Morris
West, mas termino por ver O Clone do começo ao fim, essa Jade, essa
Latifa, mas por que Lucas é tão vacilante? E por fim, como
vem se tornando hábito, a Seleção é massacrada
no alto da montanha (3x1). Já nem me importo muito, já vamos
nos acostumando, dane-se o futebol. Não vou sofrer por causa de
Vampeta e companhia. E esse Felipão pode ser simpático, mas
adora um perna-de-pau.
Hoje, nosso terceiro e último dia aqui, ficamos conhecendo um sr.
Antônio, taxista que diz que é mais conhecido pelo apelido
de Telefone. Imagino que é por causa da pele (Antônio é
negro como ébano) mas não: ele explica que é porque
sempre foi muito comunicativo. E é verdade. Leva-nos a uma fábrica
de chocolate onde compramos umas latas muito bonitas. A caminho, Telefone
nos informa que só vai cobrar a tarifa até o hotel, desconsiderando
o desvio até a fábrica, porque sempre lhe dão uma
caixinha de presente quando conduz clientes até lá. E ele
sempre leva os chocolates para a filha. Fico comovido e lhe dou uma generosa
gorjeta. Telefone me passa seu cartão de visitas e diz que estará
sempre de prontidão quando eu precisar. A quem interessar possa:
Antônio Alvori da Silva (¨viagens e passeios¨), telefone
(54) 91062578, Canela, Rio Grande do Sul.
E se forem lá e encontrarem o porco-espinho, não se assustem:
ele é bonzinho e merece um beijo no focinho. |
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