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Sonhos
Eustáquio Gomes
Jack Kerouac, o autor beat de On the road, teve a coragem de publicar um
livro relatando seus sonhos. Chatíssimo. Uma das coisas mais penosas
que há é ouvir (ou ler) sonhos de outros, salvo se você
se interessa pelo sonhador. É que o sonho não parece vida
real, embora seja parte integrante dela. Freudianos e junguianos atribuem
grande importância aos sonhos. Eles seriam meios que a psique providencia
para compensar desarranjos do eu consciente. Desde que me convenci disso
passei a anotar meus sonhos. Não com o propósito de publicá-los,
Deus me livre. No máximo quero saber por onde andei durante a noite.
Sonhos, da maioria a gente esquece. Mas há aqueles que ficam na
memória uma vida inteira. Lembro-me nitidamente de um que tive há
quase um quarto de século. Até hoje fico pensando no que
significa. Regressava com a mulher e os dois filhos pequenos de uma viagem.
Ao chegar a Campinas, dou com um cenário de destruição.
Nossa casa, o bairro, os prédios, tudo posto abaixo por uma dilúvio.
A paisagem é um deserto de calhaus e detritos. Sobre essas coisas
paira um sol pálido e desolador que parece anunciar tanto o crepúsculo
como uma nova manhã. Indago, apreensivo: ¨Vou ter forças
para reconstruir tudo?¨.
Em setembro de 2000, sonhei que morávamos no campo e um cão
hidrófobo habitava o subsolo. Uma vez veio à superfície
rompendo larga camada de terra. Obriguei-o a voltar para baixo com fortes
golpes de pá na cabeça. Depois sonhei que era segunda-feira
e que devia me aprontar para o trabalho. Acordei de fato e olhei o relógio,
mas eram apenas três da manhã.
Em 10 de março deste ano, acordei suando frio. Tinha sonhado que
matara um escorpião cujo ferrão era tremendo. Havia-o ensopado
com álcool e ateado fogo. Mal começou a queimar, transformou-se
numa garotinha. Em meio ao novelo de chamas (as línguas de fogo
emergiam da altura do tórax) ela chorava e lastimava sua sorte.
Um sonho recente, de 2 de novembro último: numa sala comprida e
estreita com poltronas colocadas umas contra outras, estou sentado diante
de uma mulher de uns 60 anos que identifico como sendo ¨uma senhora
do mundo dos livros¨. Falamos de coisas sutis, quase metafísicas.
De repente se intromete na conversa um rapagão de terno, do tipo
perspicaz, que passa a argumentar com forte sentido prático sobre
isto e aquilo. Logo criou-se um certo antagonismo entre as partes,
como se ele fizesse parte de um universo que não se coadunava com
o nosso. Perguntei-lhe se era advogado. Respondeu coçando dois dedos:
¨Dinheiro¨, disse. Quando abandonamos a sala, soube que cabia a
mim apagar as luzes e fechar a porta. Tive dificuldade de localizar os
interruptores e de fazê-los corresponder às respectivas lâmpadas.
No corredor escuro, notei que minha pasta pendia do lado da alça
onde um pino havia se soltado. Esforçava-me por encontrar o pino
perdido quando o sonho se esfumou.
Uma semana depois sonhei que um antigo colega de trabalho, muito elegante
no trajar mas dado a embebedar-se, fazia-me confidências sobre suas
infidelidades conjugais. A certa altura admitiu, sem qualquer rubor, que
a esposa havia feito o mesmo com ele em pelo menos três ocasiões.
Isso não parecia tê-lo abalado, antes o divertia. Em seguida
sou apresentado a ela: é magra, alta e usa o cabelo amarrado atrás.
Para demonstrar seus dotes, saracoteia diante de mim e de outros espectadores
movimentando freneticamente o traseiro.
Duas noites mais tarde me vejo, eu e um bando de outros garotos, aboletado
no topo do que parece ser uma alta plataforma com cordas entrelaçadas.
A descida é íngreme mas precisa ser feita, senão algo
de horrível vai acontecer. Não desço imediatamente,
antes me aquieto num canto e espero que o movimento se acalme. Aparentemente
tenho medo de um despencamento geral. Incerto de que vou conseguir descer,
permaneço ali sem solução à vista, mas também
sem me desesperar.
Finalmente, a semana passada, eu devia fazer um longo percurso a pé
levando um pesado fardo nos ombros. O ponto de partida é o enclave
entre a saída de Barão Geraldo e a entrada para a Unicamp,
mais exatamente a praça que há ali. Considero a perspectiva
de subir a rampa com aquele imenso fardo no lombo e depois ganhar a estrada.
Hesito se devo tomar a estrada de Campinas ou a de Paulínia. Minha
atenção se concentra apenas nas dificuldades da empreitada,
o destino não importa muito.
Pode-se ganhar a vida vendendo sonhos? Claro que sim, vide Sílvio
Santos. Até com pesadelos se pode ganhar a vida, vide Ratinho. A
transfixação e a erosão das torres gêmeas do
WTC são matéria de um mau sonho — que está rendendo
100 bilhões de dólares aos fornecedores de armas da guerra
que se seguiu. No entanto, minha seleção de sonhos vale somente
esta página. Destina-se àqueles que apreciam ler o destino
dos outros através de suas incongruências. Talvez possam me
explicar se estou são o suficiente para continuar na vida civil.
Espero cartas judiciosas.
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